quarta-feira, 11 de outubro de 2017

A ESTÁTUA - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

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A ESTÁTUA


Nas suas mãos a voz do mar dormia
Nos seus cabelos o vento se esculpia

A luz rolava entre seus braços frios
E nos seus olhos cegos e vazios
Boiava o rasto branco dos navios.


© SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
In No tempo dividido, 1954

A ESCRITA - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

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A ESCRITA


No Palácio Mocenigo onde viveu sozinho
Lord Byron usava as grandes salas
Para ver a solidão espelho por espelho
E a beleza das portas quando ninguém passava

Escutava os rumores marinhos do silêncio
E o eco perdido de passos num corredor longínquo
Amava o liso brilhar do chão polido
E os tectos altos onde se enrolam as sombras
E embora se sentasse numa só cadeira
Gostava de olhar vazias as cadeiras

Sem dúvida ninguém precisa de tanto espaço vital
Mas a escrita exige solidões e desertos
E coisas que se vêem como quem vê outra coisa

Pudemos imaginá-lo sentado à sua mesa
Imaginar o alto pescoço espesso
A camisa aberta e branca
O branco do papel as aranhas da escrita
E a luz da vela — como em certos quadros —
Tornando tudo atento


© SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
In Ilhas, 1989
Poemas reencontrados

JARDIM VERDE - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

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JARDIM VERDE


Jardim verde e em flor, jardim de buxo
Onde o poente interminável arde
Enquanto bailam lentas as horas da tarde.
Os narcisos ondulam e o repuxo,
Voz onde o silêncio se embala,
Canta, murmura e fala
Dos paraísos desejados,
Cuja lembrança enche de bailados
A clara solidão das tuas ruas.


© SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
In Dia do mar, 1947

JANELA - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

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JANELA


Janela rente ao mar e rente ao tempo
— Ó mãos poisadas sobre um Junho antigo —
De ano em ano de hora em hora
Caminho para a frente e cega me persigo

Quem me consolará do meu corpo sepultado?


© SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
In Geografia, 1962
Dual

SEI QUE ESTOU SÓ - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

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SEI QUE ESTOU SÓ


Sei que estou só e gelo entre as folhagens
Nenhuma gruta me pode proteger
Como um laço deslaça-se o meu ser
E nos meus olhos morrem as paisagens.

Desligo da minha alma a melodia
Que inventei no ar. Tombo das imagens
Como um pássaro morto das folhagens
Tombando se desfaz na terra fria.


© SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
In Coral, 1950

[SERENAMENTE SEM TOCAR NOS ECOS] - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

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[SERENAMENTE SEM TOCAR NOS ECOS]


Serenamente sem tocar nos ecos
Ergue a tua voz
E conduz cada palavra
Pelo estreito caminho.

Vive com a memória exacta
De todos os desastres
Aos deuses não perdoes os naufrágios
Nem a divisão cruel dos teus membros.

No dia puro procura um rosto puro
Um rosto voluntário que apesar
Do tempo dos suplícios e dos nojos
Enfrente a imagem límpida do mar.


© SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
In No tempo dividido, 1954

terça-feira, 10 de outubro de 2017

A CASA TÉRREA - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

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A CASA TÉRREA

Que a arte não se torne para ti a compensação daquilo que não soubeste ser 
Que não seja transferência nem refúgio 
Nem deixes que o poema te adie ou divida: mas que seja 
A verdade do teu inteiro estar terrestre 

Então construirás a tua casa na planície costeira 
A meia distância entre montanha e mar 
Construirás — como se diz — a casa térrea — 
Construirás a partir do fundamento 



© SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN 
In O nome das coisas, 1977 
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A BELA E PURA - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

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A BELA E PURA

A bela e pura palavra Poesia
Tanto pelos caminhos se arrastou
Que alta noite a encontrei perdida
Num bordel onde um morto a assassinou.


© SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
In No mar novo, 1958

25 DE ABRIL - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

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25 DE ABRIL

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo


© SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
In O nome das coisas, 1977

INICIAL - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

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INICIAL

O mar azul e branco e as luzidias 
Pedras: O arfado espaço 
Onde o que está lavado se relava 
Para o rito do espanto e do começo 
Onde sou a mim mesma devolvida 
Em sal espuma e concha regressada 
À praia inicial da minha vida 


© SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN 
In Dual, 1972 
Dual 

sábado, 11 de junho de 2016

Reinvenção - Cecília Meireles

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Reinvenção

A vida só é possível reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível reinventada.


Cecília Meireles

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Canção a caminho do céu - Cecília Meireles

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Canção a caminho do céu

Foram montanhas? foram mares?
foram os números...? - não sei.
Por muitas coisas singulares,
não te encontrei

 E te esperava, e te chamava,
e entre os caminhos me perdi.
Foi nuvem negra? maré brava?
E era por ti!

 As mãos que trago, as mãos são estas.
Elas sozinhas te dirão
se vem de mortes ou de festas
meu coração.

 Tal como sou, não te convido
a ires para onde eu for.

Tudo que tenho é haver sofrido
pelo meu sonho, alto e perdido,
- e o encantamento arrependido
do meu amor.

Cecília Meireles

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