domingo, 7 de setembro de 2014

O MUNDO FILTRA-SE PELOS OUVIDOS - Lya Luft




O MUNDO FILTRA-SE PELOS OUVIDOS

O mundo filtra-se pelos ouvidos
de quem, como eu, só vê a própria noite:
meus olhos pegam sons com gestos falhos,
a máscara que vesti não tinha frestas.
Sons como peixes nesta sombra eterna
chegam e nadam, giram, se entrechocam,
em desenhos de luz que não entendo.
Abro meu coração, ouvido inquieto,
em busca de algum tom definitivo
que abra em claridade estes meus olhos
e me lance desta ilha ao mar aberto.

© LYA LUFT
In Mulher no palco, 1984


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PERDER, GANHAR - Lya Luft




PERDER, GANHAR

Com as perdas, só há um jeito:
perdê-las.
Com os ganhos,
o proveito é saborear cada um
como uma fruta boa da estação.
A vida, como um pensamento,
corre à frente dos relógios.
O ritmo das águas indica o roteiro
e me oferece um papel:
abrir o coração como uma vela
ao vento, ou pagar sempre a conta
já vencida.

© LYA LUFT
In Para Não Dizer Adeus, 2005

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sábado, 6 de setembro de 2014

QUANDO FECHO A PORTA - Lya Luft



QUANDO FECHO A PORTA

Na parede atrás de minha mesa,
ombro a ombro,
a menina e seu pai, em dois retratos,
conversam sobre o que há no escuro
da noite, como entender o mundo,
e por que as montanhas eram tão azuis.
Quando apago a luz e fecho a porta,
eles riem baixinho desta que hoje sou:
ainda tão distraída e desassossegada,
cheia de encantamento, susto e assombro.
(E devem dizer, meneando as cabeças:
Parece que ela nunca vai mudar.)

© LYA LUFT
In Para Não Dizer Adeus, 2005

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RECEITA DE CASA - Lya Luft




RECEITA DE CASA

Uma casa deve ter varandas
para sonhar,cantos para chorar,
quartos para os segredos
e a ambivalência.

Um amor precisa espaço de voar,
liberdade para querer ficar,
alegria, e algum desassossego
contra o tédio.

Não se esqueçam os danos a cobrir,
o medo de partir, e o dom de surpreender
- que é a sua essência.

© LYA LUFT
In Para Não Dizer Adeus, 2005

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REVELAÇÃO - Lya Luft




REVELAÇÃO

Quando chegaste,
redescobri em mim inocência e alegria.
Removi a máscara que sobrava:
nada havia a esconder de ti,
nem medo - a não ser partires.

Supérfluas as palavras,
dispensada a aparência, fiquei eu,
sem prumo,
como antes da primeira dúvida
e do último desencanto.

Quando chegaste,
escutei meu nome como num outro tempo.
o meu lado da sombra entregou
o que ninguém via:
as feridas sem cura e a esperança sem rumo.

Começa a crer, por mim, que o amor é possível,
e que a vida vale a pena e o pranto
de cada dia.

© LYA LUFT
In Perdas e Ganhos, 2003

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SE ME QUISEREM AMAR - Lya Luft



SE ME QUISEREM AMAR

Se me quiserem amar, terá de ser agora:
depois, estarei cansada.
Minha vida
foi feita de parceria com a morte:
pertenço um pouco a cada uma,
para mim sobrou quase nada.

Ponho a máscara do dia,
um rosto cômodo e fixo:
assim garanto a minha sobrevida.
Se me quiserem amar, terá de ser hoje:
amanhã, estarei mudada.

© LYA LUFT
In Mulher no Palco, 1984


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SE TE PAREÇO AUSENTE - Lya Luft



SE TE PAREÇO AUSENTE

Se te pareço ausente, não creias:
hora a hora minha dor agarra-se aos teus braços,
hora a hora meu desejo revolve teus escombros,
e escorrem dos meus olhos mais promessas.
Não acredites nesse breve sono;
não dês valor maior ao meu silêncio;
e se leres recados numa folha branca,
Não creias também: é preciso encostar
teus lábios nos meus lábios para ouvir.
Nem acredites se pensas que te falo:
palavras
são meu jeito mais secreto de calar.

© LYA LUFT
In Mulher no Palco, 1984

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SEMÂNTICA - Lya Luft



SEMÂNTICA

Não se enganem comigo:
se digo sul pode ser norte,
chego mas fico ausente,
o triste é também o belo,
procuro o que não se perde
nem se pode encontrar.

Buscar resposta nos livros
é esconder-se entre linhas.
Não creio no que se enxerga,
mas nisso que se disfarça
por mais que se tente olhar:
assim me tem seduzida.

Eis o jogo que eu persigo,
meu jeito de ser feliz,
o desafio que me embala:
sempre que escrevo "morte"
estou falando da vida.


© LYA LUFT
In Para Não Dizer Adeus, 2005

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DANÇA LENTA - Lya Luft



DANÇA LENTA

Não somos nem bons nem maus:
somos tristes. Plantados entre chão
e estrelas, lutamos com sangue,
pedras e paus, sonho
e arte.

Nem vida nem morte:
somos lúcida vertigem,
glória e danação. Somos gente:
dura tarefa.
Com sorte, aqui e ali a ternura
faz parte.

©Lya Luft
In Para Não Dizer Adeus, 2005

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DÁDIVA - Lya Luft



DÁDIVA

Derrama sobre mim tua esperança de homem,
tanto tempo contida:
planta em meu solo a árvore da renovação,
mais alta do que noite escura.

Larga a solidão, apaga a desesperança,
inventa um novo reino
onde as águas não são naufrágio,
nem o amor desengano.

Vem para esta enseada, onde há ventania
e risco, mas podes ancorar teu coração
depois da longa procura,
para que ele pouse e pulse e brilhe

como a estrela-do-mar em seu fundo
de oceano.

© LYA LUFT
In Para Não Dizer Adeus, 2005
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CÍRCULO - Lya Luft



CÍRCULO

Na vida na morte
esta chama, esta fonte,
esta noite invadida:
seus panos na cama
seus passos na casa
sua voz ao meu lado,
meu bem no seu mundo
varando meu peito:
me povoa, me coroa
de beijos e mágoas
me prende em sua rede,
me define, me redime
me inventa e desinventa
me habita e transfigura,
no ritmo das águas
deste rio sem fundo
que chama na fonte
da morte, na vida.

© LYA LUFT
In Para não dizer adeus, 2005


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ESSA MÁSCARA - Lya Luft





Essa máscara de placidez
tanto me absorveu, que hoje
não há distância entre eu e ela:
revela a minha face,
suave e sutil,
e que me torna amiga.

Sou ela, ou serei eu?
Talvez, por tão antiga,
seja ela o meu rosto e seja máscara
esse outro perfil que olha para dentro.
Mansa por fora: dentro uma floresta escura,
poço de paixão, abismo e arremesso.

© LYA LUFT
Im Mulher no palco, 1984

ENTÃO ALGO MUDOU - Lya Luft



ENTÃO ALGO MUDOU

Então algo mudou: o tom de voz, o olhar que se
esquiva, a mão que se afasta.
A porta precisa ser fechada, a ponte levantada,
queimados os navios. Levaremos meses, anos esten-
dendo as mãos para um vazio, interrogando uma
ausência.
Encarar a realidade é um modo de morrer. Mas sem
isso, não haverá renascimento.

© LYA LUFT
In Secreta Mirada, 1997

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TÃO SUTILMENTE EM TANTOS BREVES ANOS - Lya Luft



TÃO SUTILMENTE EM TANTOS BREVES ANOS

  Tão sutilmente em tantos breves anos
foram se trocando sobre os muros
mais que desigualdades, semelhanças,
que aos poucos dois são um, sem que no entanto
deixem de ser plurais:
talvez as asas de um só anjo, inseparáveis.
Presenças, solidões que vão tecendo a vida,
o filho que se faz, uma árvore plantada,
o tempo gotejando do telhado.
Beleza perseguida a cada hora, para que não baixe
o pó de um cotidiano desencanto.

Tão fielmente adaptam-se as almas destes corpos
que uma em outra pode se trocar,
sem que alguém de fora o percebesse nunca.

© LYA LUFT
In Secreta Mirada, 1997


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TRAPEZISTA - Lya Luft



TRAPEZISTA

A vida chega em silêncio;
desenvolve reflexos,
interroga esfinge
que responde ou nega
num espelho baço.
(A resposta nunca é clara
nem é pequena.)

Não é a mim que vejo:
é o outro, num misto de incerteza
e esperança de que não seja
mais um rosto virado,
uma boca cerrada
- mais um desgosto
a cada passo.

Desejo, sonho e medo,
o amor é salto em rede
entre a razão e a magia,
(E só assim vale a pena.)

© LYA LUFT
In Para Não Dizer Adeus, 2005

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CANÇÃO EM CAMPO VASTO - Lya Luft



CANÇÃO EM CAMPO VASTO

Deixa-me amar-te com ternura, tanto
que nossas solidões se unam,
e cada um falando em sua margem
possa escutar o próprio canto.

Deixa-me amar-te com loucura, ambos
cavalgando mares impossíveis
em frágeis barcos e insuficientes velas,
pois disso se fará a nossa voz.

Ajuda-me a amar-te sem receio:
a solidão é um campo muito vasto
que não se deve atravessar a sós.

© LYA LUFT
In Secreta Mirada, 1997

CANÇÃO DO ESTRANHAMENTO - Lya Luft



CANÇÃO DO ESTRANHAMENTO

Baixei as tranças para que viesses, 
dei-te a chave para que habitasses 
os meus quartos mais secretos. 
Mas de repente vejo-te na praia 
buscando um horizonte diferente 
que nem eu antes disso pressentia. 
Quero deixar-te, sem desprender-me 
de tudo isso que sou e desejaste, 
e me dói, e me espanta e me remorde 
abrir a mão para o teu sonho alado 
sem te cobrar ternuras nem cuidados 
com o que conquistaste e já não queres, 
que te libertaria mas te algema 
e que te inquieta agora, com desejos 
de correr, de voar, de estar ausente. 

Quero ser o que ainda ontem fomos, 
quero ter o que nós tivemos, 
quero que a realidade se recolha 
e permaneça, entre nós, a fantasia. 


© LYA LUFT 
In Secreta Mirada, 1997


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CANÇÃO DO AMOR SERENO - Lya Luft



CANÇÃO DO AMOR SERENO

Vem sem receio: eu te recebo
Como um dom dos deuses do deserto
Que decretaram minha trégua, e permitiram
Que o mel de teus olhos me invadisse.

Quero que o meu amor te faça livre,
Que meus dedos não te prendam
Mas contornem teu raro perfil
Como lábios tocam um anel sagrado.

Quero que o meu amor te seja enfeite
E conforto, porto de partida para a fundação
Do teu reino, em que a sombra
Seja abrigo e ilha.

Quero que o meu amor te seja leve
Como se dançasse numa praia uma menina.

© LYA LUFT


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CANÇÃO DA ESCUTA - Lya Luft


CANÇÃO DA ESCUTA

O sonho na prateleira
me olha com seu ar
de boneco quebrado.

Passo diante dele muitas vezes
e sorrimos um para o outro,
cúmplices de nossos desastres cotidianos.

Mas quando o pego no colo
(como às bonecas tão antigamente)
para avaliar se tem conserto
ou se ficará para sempre como está,
sinto sem estranheza
que dentro dele ainda bate
um pequeno tambor obstinado
e marca – timidamente –
um doce ritmo nos meus passos.

© LYA LUFT
In Secreta Mirada, 1997


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BEM QUE EU QUERIA DORMIR - Lya Luft



BEM QUE EU QUERIA DORMIR

Bem que eu queria dormir.
mas a culpa chamou-me a noite inteira.
Eu preferia fugir,
mas a morte arranhava a minha porta.

Devia esquecer o amor,
mas esse não desiste de mim:
me agarra, me devora e me vomita
no alto da escada.
enganosa luz.
Bela dama: basta uma palavra tua.



© LYA LUFT
Im Mulher no palco, 1984

AUTO-RETRATO - Lya Luft



AUTO-RETRATO

Alguém diz que sou bondosa:
está tão enganado que dá pena.
Alguém diz que sou severa,
e acho graça.
Não sou áspera nem amena:
estou na vida como o jardineiro
se entrega em cada rosa".

© LYA LUFT
In Para Não Dizer Adeus, 2005

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NÃO É UMA ESPERANÇA - Lya Luft



NÃO É UMA ESPERANÇA

Não é uma esperança:
é a voz de alguém clamando
sempre que espero que algum anjo fale.
Não sou ninguém, sentada neste espaço
entre os espelhos do mar e os penhascos
do coração.
(Se eu me lançasse deles, enrolada
nas tantas frases que formei na vida?)

No mar-espelho fui jogando todas
as máscaras sem olhos
que me guardavam no avesso, e me vestiam.
São delas essas mãos que agora emergem
do mar, do sonho, da memória.
e ao meu pescoço amarram suas tranças
para levar.

© LYA LUFT
In Mulher no palco, 1984


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MATURIDADE - Lya Luft



MATURIDADE

Caminho entre as minhas perdas
que são insetos escuros,
e os meus ganhos: douradas borboletas.

A luz de uma paixão, o dedo da morte,
o grave pincel da solidão
desenharam meus contornos, firmaram
meu chão.

Que liberdade, não precisar pensar;
que alívio não ter de administrar
minha vida:
apenas andar, e olhar,
apenas ouvir essas vozes
que vêm de longe, passam por mim
e não me dão importância.

Porque no vasto oceano,
a minha eventual desarmonia
é só uma gota
desafinada.
Mais nada.

© LYA LUFT
In Para Não Dizer Adeus, 2005

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MAR DE MENINA - Lya Luft



MAR DE MENINA

Havia um mar,
e ali brotava uma ilha
povoada de lobos e de pensamentos.
Havia um fundo escuro e belo
onde os náufragos dançavam com sereias.
Havia ansiedade e abraço.
Havia âncora e vaguidão.

Brinquei com peixes e anjos,
fui menina e fui rainha,
acompanhada e largada,
sempre a meia altura
do chão.

A vida um barco, remos ou ventos,
tudo real e tudo
ilusão.

© LYA LUFT
In Para não dizer adeus, 2005


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LEMBRO-ME DE TI - Lya Luft



LEMBRO-ME DE TI

Lembro-me de ti
Nesse instante absoluto,
A vida conduzida por um fio de música.
Intenso e delicado, ele vai-nos fechando num casulo
Onde tudo será permitido.

Se é só isso que podemos ter,
Que seja forte. Que seja único.
Tão íntimo quanto ouvirmos a mesma melodia,
Tendo o mesmo - esplêndido - pensamento.

© LYA LUFT
In Mulher no Palco, 1984

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ÚLTIMA CANÇÃO - Lya Luft



ÚLTIMA CANÇÃO

Deus,
eu faço parte do teu gado:
esse que confinas em sonho e paixão
e às vezes em terrível liberdade.
Sou, como todos, marcada neste flanco
pelo susto da beleza, pelo terror da perda
e pela funda chaga dessa arte
em que pretendo segurar o mundo.
No fundo,
Deus,
eu faço parte da manada
que corre para o impossível,
vasto povo desencontrado
a quem tanges, ignoras
ou contornas
com teu olhar absorto.
Deus,
eu faço parte do teu gado
estranhamente humano,
marcado para correr amar morrer
querendo colo, explicação, perdão
e permanência.

© LYA LUFT
In Secreta mirada, 1997

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CANÇÃO DA PEQUENA MELANCOLIA - Lya Luft



CANÇÃO DA PEQUENA MELANCOLIA

Um anjo vem todas as noites:
senta-se ao pé de mim, e passa
sobre meu coração a asa mansa,
como se fosse meu melhor amigo.

Esse fantasma que chega e me abraça
(asas cobrindo a ferida do flanco)
é todo o amor que resta
entre ti e mim, e está comigo.

© LYA LUFT
In Mulher no Palco, 1984


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VIAGEM - Lya Luft



VIAGEM

Não é preciso morar na esquina
nem ser jovem ou belo:
o amor melhor é sempre dentro
e perto.
Chega inesperado,
vem forte vem doce, acalma
e desatina.

Se está na minha rua ou vem de fora,
ele ignora o tempo e a idade:
o amor é sempre
agora.

É vento sutil e mar sem beira:
o amor é destino de quem está aberto,
e dói sem remissão quando negado.

O melhor amor sacia a fome inteira:
mas tem de ser aceito,
tem de ser ousado, tem de ser
navegado.

© LYA LUFT
In Para não dizer adeus, 2005


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Canção quase sábia - Lya Luft



Canção quase sábia

Entre amiga e amada
Esta parede aérea, vidro
De circunstancias que a gente inventa
E desfaz.
Entre duas praias quase iguais
O coração viaja:
Eu - farol aceso em cada lado -
Sou as duas sendo uma
E assim existo mais.
Descobrimos talvez que o mar
- sendo maior que nós -
Não faz tanta diferença.

Lya Luft

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quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O Sonho - Olavo Bilac




O Sonho

Quantas vezes, em sonho, as asas da saudade
Solto para onde estás, e fico de ti perto!
Como, depois do sonho, é triste a realidade!
Como tudo, sem ti, fica depois deserto!

Sonho... Minha alma voa. O ar gorjeia e soluça.
Noite... A amplidão se estende, iluminada e calma:
De cada estrela de ouro um anjo se debruça,
E abre o olhar espantado, ao ver passar minha alma.

Há por tudo a alegria e o rumor de um noivado.
Em torno a cada ninho anda bailando uma asa.
E, como sobre um leito um alvo cortinado,
Alva, a luz do luar cai sobre a tua casa.

Porém, subitamente, um relâmpago corta
Todo o espaço... O rumor de um salmo se levanta
E, sorrindo, serena, apareces à porta,
Como numa moldura a imagem de uma Santa...


Olavo Bilac