sábado, 28 de junho de 2014

Poema - Ferreira Gullar



Poema

Se morro
universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
se apago a lâmpada:
os sapatos - da - ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó -
dos - andes,
bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
morrem comigo.

Ou não:
o sol voltará a marcar
este mesmo ponto do assoalho
onde esteve meu pé;
deste quarto
ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
uma nova cidade
surgirá de dentro desta
como a árvore da árvore.

Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens
a mesma história que eu leio, comovido.

A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.

A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz em baixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.


Ferreira Gullar

Cantiga para não morrer - Ferreira Gullar



Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Ferreira Gullar

Menos a mim - Ferreira Gullar



Menos a mim

Conheço a aurora com seu desatino
Conheço o amanhecer com o seu tesouro
Conheço as andorinhas sem destino
Conheço rios sem desaguadouros
Conheço o medo do princípio ao fim
Conheço tudo, conheço tudo
Menos a mim.

Conheço o ódio e seus argumentos
Conheço o mar e suas ventanias
Conheço a esperança e seus tormentos
Conheço o inferno e suas alegrias
Conheço a perda do princípio ao fim
Conheço tudo, conheço tudo
Menos a mim.

Mas depois que chegaste de algum céu
Com teu corpo de sonho e margarida
Pra afinal revelar-me quem sou eu
Posso afirmar enfim
Que não conheço nada desta vida
Que não conheço nada, nada, nada
Nem mesmo a mim.

Ferreira Gullar

Ouvindo apenas - Ferreira Gullar



Ouvindo apenas

e gato e passarinho
e gato
e passarinho (na manhã
veloz
e azul
de ventania e ar
voZes
voando)
e cão
latindo e gato e passarinho (só
rumores
de cão
de gato
e passarinho
ouço
deitado
no quarto
às dez da manhã
de um novembro
no Brasil)

Ferreira Gullar




Pintura - Ferreira Gullar



Pintura

Eu sei que se tocasse
com a mão aquele canto do quadro
onde um amarelo arde
me queimaria nele
ou teria manchado para sempre de delírio
a ponta dos dedos.

Ferreira Gullar

Meu povo, meu poema - Ferreira Gullar



Meu povo, meu poema

Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro

Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta

Ferreira Gullar


ANOITECE EM OUTUBRO - Ferreira Gullar



ANOITECE EM OUTUBRO

A noite cai, chove manso lá fora
Meu gato dorme
Enroladinho na cadeira
Num dia qualquer
Não existirá mais
Nenhum de nós dois
Para ouvir nesta sala
A chuva que eventualmente caía
Sobre as calçadas da rua Duvivier.

Ferreira Gullar

Pretendo... - Ferreira Gullar





"Pretendo que a poesia tenha
a virtude de, em meio ao sofrimento
e o desamparo,
acender uma luz qualquer,
uma luz que não nos é dada,
não desce dos céus,
mas que nasce das mãos
e do espírito dos homens."

Ferreira Gullar

Bela, Bela - Ferreira Gullar



Bela, Bela


Bela, bela
Mais que bela
Mas como era o nome dela?
Não era Helena, nem Vera
Nem Nara, nem Gabriela
Nem Tereza, nem Maria
Seu nome, seu nome era

Perdeu-se na carne fria
Perdeu-se na confusão
De tanta noite e tanto dia
Perdeu-se na profusão
Das coisas acontecidas

Constelações de alfabeto
Noites escritas a giz
Pastilhas de aniversário
Domingos de futebol
Enterros, corsos, comícios
Roleta, bilhar, baralho
Mudou de cara e cabelos
Mudou de olhos e riso
Mudou de casa e de tempo
Mas está comigo
Perdido comigo
Teu nome
Em alguma gaveta

Ferreira Gullar



Nova Canção do Exílio - Ferreira Gullar



Nova Canção do Exílio
Para Cláudia


Minha amada tem palmeiras
Onde cantam passarinhos
e as aves que ali gorjeiam
em seus seios fazem ninhos
Ao brincarmos sós à noite
nem me dou conta de mim:
seu corpo branco na noite
luze mais do que o jasmim
Minha amada tem palmeiras
tem regatos tem cascata
e as aves que ali gorjeiam
são como flautas de prata
Não permita Deus que eu viva
perdido noutros caminhos
sem gozar das alegrias
que se escondem em seus carinhos
sem me perder nas palmeiras
onde cantam os passarinhos

Ferreira Gullar


No Corpo - Ferreira Gullar



No Corpo

De que vale reconstruir com palavras
o que o verão levou
entre nuvens e risos
junto com o jornal velho pelos ares?

O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo na noite
agora são apenas esta
contração (este clarão)
de maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.


Ferreira Gullar

Aprendizado - Ferreira Gullar





Aprendizado

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.

Ferreira Gullar

RECIFE - Manuel Bandeira



RECIFE

Há que tempo que não te vejo!
Não foi por querer, não pude.
Nesse ponto a vida me foi madastra,
Recife.
Mas não houve dia em que te não sentisse dentro de mim:
Nos ossos, os olhos, nos ouvidos, no sangue, na carne,
Recife.
Não como és hoje,
Mas como eras na minha infância,
Quando as crianças brincavam no meio da rua
(Não havia ainda automóveis)
E os adultos conversavam de cadeira nas calçadas
(Continuavas província,
Recife).
Eras um Recife sem arranha-céus, sem comunistas
Sem Arraes, e com arroz,
Muito arroz,
De água e sal,
Recife.
Um Recife ainda do tempo em que o meu avô materno
Alforriava espontaneamente
A moça preta Tomásia, sua escrava,
Que depois foi a nossa cozinheira
Até morrer,
Recife.
Ainda existirá a velha casa senhorial do Monteiro?
Meu sonho era acabar morando e morrendo
Na velha casa do Monteiro.
Já que não pode ser,
Quero, na hora da morte, estar lúcido
Para mandar a ti o meu último pensamento,
Recife.

Manuel Bandeira

O último poema - Manuel Bandeira



O último poema

Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

Manuel Bandeira

Arte de Amar - Manuel Bandeira





 Arte de Amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

Manuel Bandeira

Desencanto - Manuel Bandeira



Desencanto

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.

Manuel Bandeira

Poética - Manuel Bandeira



Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário
do amante exemplar com cem modelos de cartas
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


Manuel Bandeira

Rondó dos Cavalinhos - Manuel Bandeira



Rondó dos Cavalinhos

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo.


Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O sol tão claro lá fora
E em minhalma — anoitecendo!


Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Alfonso Reys partindo,
E tanta gente ficando...


Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
A Itália falando grosso,
A Europa se avacalhando...


Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo...
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda,
E em minhalma — anoitecendo!

Manuel Bandeira




Testamento - Manuel Bandeira



Testamento

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os...
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

Manuel Bandeira


Vou-me embora pra Pasárgada - Manuel Bandeira


Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Manuel Bandeira

Minha grande ternura - Manuel Bandeira



Minha grande ternura

Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.

Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.

Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.

Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.

Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite de um túmulo.

Manuel Bandeira

RENÚNCIA - Manuel Bandeira



RENÚNCIA

Chora de manso e no íntimo... procura
Tentar curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.

Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será ela só tua ventura...

A vida é vã como a sombra que passa
Sofre sereno e de alma sombranceira
Sem um grito sequer tua desgraça.

Encerra em ti tua tristeza inteira
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira...

Manuel Bandeira

Assim a vida nos afeiçoa - Manuel Bandeira



Assim a vida nos afeiçoa

Se fosse dor tudo na vida,
Seria a morte o sumo bem.
Libertadora apetecida,
A alma dir-lhe-ia, ansiosa: - Vem!
E a vida vai tecendo laços,
Quase impossíveis de romper:
Tudo que amamos são pedaços
vivos de nosso próprio ser
A vida assim nos afeiçoa,
Prende. Antes fosse toda fel!
Que ao mostrar às vezes boa,
Ela requinta em ser cruel…

Manuel Bandeira



quinta-feira, 19 de junho de 2014

CÂNTICO II - Cecília Meireles



CÂNTICO II


Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens...
não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabes que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade.
És tu.

Cecília Meireles

Retrato - Cecília Meireles




Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida a minha face?

Cecília Meireles

Leveza - Cecília Meireles




Leveza

Leve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.
E a cascata aérea
de sua garganta,
mais leve.
E o que lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto,
mais leve.
E o desejo rápido
desse mais antigo instante,
mais leve.
E a fuga invisível
do amargo passante,
mais leve.

Cecília Meireles

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Motivo - Cecília Meireles




Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Cecília Meireles

As proas giram sozinhas... - Cecília Meireles





As proas giram sozinhas...

No desequilíbrio dos mares,
as proas giram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que certamente tu vinhas.

Eu te esperei todos os séculos
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto

Quando as ondas te carregaram
meu olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro destas águas sem fim.

Cecília Meireles

Hoje Desaprendo O Que Tinha Aprendido Ontem - Cecília Meireles



Hoje Desaprendo O Que Tinha Aprendido Ontem

Hoje desaprendo o que tinha aprendido ontem
E que amanhã recomeçarei a aprender.
Todos os dias desfaleço e desfaço-me em cinza efêmera:
todos os dias reconstruo minhas edificações, em sonho eternas.

Esta frágil escola que somos, levanto-a com paciência
dos alicerces às torres, sabendo que é trabalho sem termo.
E do alto avisto os que folgam e assaltam, dono de riso e pedras.
Cada um de nós tem sua verdade, pela qual deve morrer.

De um lugar que não se alcança, e que é, no entanto, claro,
minha verdade, sem troca, sem equivalência nem desengano
permanece constante, obrigatória, livre:
enquanto aprendo, desaprendo e torno a aprender

Cecília Meireles

Luar - Cecília Meireles




Luar

Face do muro tão plana,
como sabugueiro florido.

O luar parece que abana
as ramagens na parede.

A noite toda é um zumbido
e um florir de vaga-lumes.

A boca morre de sede
junto à frescura dos galhos.

Andam nascendo os perfumes
na seda crespa dos cravos.

Brota o sono dos canteiros
como o cristal dos orvalhos.

Cecília Meireles

Epigrama nº 2 - Cecília Meireles



Epigrama nº 2 

És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir, e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo, despovoado e profundo, persiste. 

Cecília Meireles

APRESENTAÇÃO - Cecília Meireles





Aqui está a minha vida.
Esta areia tão clara com desenhos de andar
dedicados ao vento.
Aqui está a minha voz,
esta concha vazia, sombra de som
curtindo seu próprio lamento.
Aqui está minha dor,
este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está a minha herança,
este mar solitário
que de um lado era amor, e de outro, esquecimento.

Cecília Meireles

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Dei de Comer aos Pássaros - Cecília Meireles



Dei de Comer aos Pássaros

Dei de comer aos pássaros,
dei de beber à terra.
Procurei os trabalhos do mundo:
não conduzem a nada.
Ninguém é feliz à custa de outrem.
O próximo fica muito distante
e alheio ao nosso amor.
Os pássaros comeram
e a terra bebeu pelas minhas mãos.
Mas os homens ouviram meu pensamento
e gostaram apenas das minhas palavras,
sem fome nem sede.

Cecília Meireles.

Se Eu Fosse Apenas - Cecília Meireles




Se Eu Fosse Apenas

Se eu fosse apenas uma rosa,
com que prazer me desfolhava,
já que a vida é tão dolorosa
e não sei dizer mais nada!

Se eu fosse apenas água ou vento,
com que prazer me desfaria,
como em teu próprio pensamento
vai desfazendo a minha vida!

Perdoa-me causar-te mágoa
desta humana, amarga demora
- de ser menos breve do que a água
mais durável que o vento e a rosa.

Cecília Meireles

Nas Águas Vosso Amor Ponde - Cecília Meireles



Nas Águas Vosso Amor Ponde

A palavra que te disse,
talvez por ser tão pequena,
em tais desprezos perdeu-se
que não deixou nem pena.

Murmurei-a a uma cisterna
de turvas águas antigas
e foi-se de cova em cova
em múltiplas cantigas.

Amadores deste mundo,
nas águas vosso amor ponde;
que elas vos darão resposta,
quando ninguém responde.

Cecília Meireles, in 'Retrato Natural'

Assovio - Cecília Meireles




Assovio

Ninguém abra a sua porta
para ver que aconteceu:
saímos de braço dado,
a noite escura mais eu.

Ela não sabe o meu rumo,
eu não lhe pergunto o seu:
não posso perder mais nada,
se o que houve já se perdeu.

Vou pelo braço da noite,
levando tudo que é meu:
- a dor que os homens me deram,
e a canção que Deus me deu.

Cecília Meireles

Abracemos a Noite - Cecília Meireles



Abracemos a Noite

Abracemos a noite
Que chega do abismo,
Instruída e calada.

Em seu peito de treva
Descansemos a alma
Tão desesperada

Contemplemos a noite
Vestida de sombra,
De tempo adornada.

Tão maternal e estranha,
Tão simples, tão deusa,
Fácil e inviolada,

Que a varanda remota
De um negro horizonte
Prolonga, admirada.

Abracemos a noite
Que tece e destece
A frágil escada.

Cecília Meireles

Canção do Amor-Perfeito - Cecília Meireles



Canção do Amor-Perfeito

Eu vi o raio de sol
beijar o outono.
Eu vi na mão dos adeuses
o anel de ouro.
Não quero dizer o dia.
Não posso dizer o dono.

Eu vi bandeiras abertas
sobre o mar largo
e ouvi cantar as sereias.
Longe, num barco,
deixei meus olhos alegres,
trouxe meu sorriso amargo.

Bem no regaço da lua,
já não padeço.
Ai, seja como quiseres,
Amor-Perfeito,
gostaria que ficasses,
mas, se fores, não te esqueço.

Cecília Meireles, in 'Retrato Natural'

CÂNTICO XXIII - Cecília Meireles



CÂNTICO XXIII

Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem,
Sem lhes falares.

Cecília Meireles

Rosa - Cecília Meireles



Rosa

"Tu és como rosto das rosas:
diferente em cada pétala.
Onde estava o teu perfume?
Ninguém soube.
Teu lábio sorriu para todos os ventos
e o mundo inteiro ficou feliz.
Eu, só eu, encontrei a gota de orvalho
que te alimentava, como um
segredo que cai do sonho..."

Cecília Meireles

Epigrama n° 1 - Cecília Meireles




Epigrama n° 1

Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis
uma sonora ou silenciosa canção:
flor do espírito, desinteressada e efêmera.

Por ela, os homens te conhecerão:
por ela, os tempos versáteis saberão
que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,
quando por ele andou teu coração.

Cecília Meireles

Cântico XIII - Cecilia Meireles




Cântico XIII

Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica-se os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.

Cecilia Meireles

CÂNTICO lV - Cecília Meireles




CÂNTICO lV

Adormece o teu corpo com a música da vida.
Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.
Não queiras ser tu.
Quere ser a alma infinita de tudo.
Troca o teu curto sonho humano
Pelo sonho imortal.
O único.
Vence a miséria de ter medo.
Troca-te pelo Desconhecido.
Não vês, então, que ele é maior?
Não vês que ele não tem fim?
Não vês que ele és tu mesmo?
Tu que andas esquecido de ti?

Cecília Meireles

É preciso não esquecer nada: - Cecília Meireles




É preciso não esquecer nada:

nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence.

Cecília Meireles

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Valsa - Cecília Meireles




Valsa

Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos
e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos,
que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.

Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto
e modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
e estudo apenas o ar e as águas.

Coitado de quem pôs sua esperança
nas praias fora do mundo...
- Os ares fogem, viram-se as águas,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.

Cecília Meireles

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Inscrição na Areia - Cecília Meireles




Inscrição na Areia

O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma!

Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?

O meu amor não tem
importância nenhuma.

Cecília Meireles

FANTASMA - Cecília Meireles





FANTASMA

Para onde vais, assim calado,
de olhos hirtos, quieto e deitado,
as mãos imóveis de cada lado?

Tua longa barca desliza
por não sei que onda, límpida e lisa,
sem leme, sem vela, sem brisa...

Passas por mim na órbita imensa
de uma secreta indiferença,
que qualquer pergunta dispensa.

Desapareces do lado oposto
e, então, com súbito desgosto,
vejo que teu rosto é o meu rosto,

e que vais levando contigo,
pelo silêncioso perigo
dessa tua navegação,

minha voz na tua garganta,
e tanta cinza, tanta, tanta,
de mim, sobre o teu coração!

Cecília Meireles

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Aceitação - Cecília Meireles





Aceitação

É mais fácil pousar os ouvidos nas nuvens
e sentir as estrelas do que prendê-lo à
terra e alcançar o rumo dos teus passos.

É mais fácil, debruçar os olhos no oceano
e assistir, lá no fundo ao nascimento
mudo das formas, que desejar que apareças
criando com teu simples gesto
o sinal de uma eterna esperança.

Não me interessam mais nem as estrelas,
nem as formas do mar, nem tu.

Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras também
vou morrer de cantar.

Cecíla Meireles


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Inscrição - Cecília Meireles



Inscrição

Quem se deleita em tornar minha vida impossível
por todos os lados?
Certamente estás rindo de longe,
ó encoberto adversário!

Mas a minha paciência é mais firme
que todas as sanhas da sorte:
mais longa que a vida, mais clara
que a luz no horizonte.

Passeio no gume de estradas tão graves
que afligem o próprio inimigo.
A mim, que me importam espécies de instantes,
se existo infinita?

Cecília Meireles

QUINTANARES - Cecília Meireles



QUINTANARES

O Natal foi diferente
porque o Menino Jesus
disse à Senhora Sant’Anna:
“Vovozinha, eu já não gosto
das canções de antigamente;
Cante as de Mario Quintana!”

Viram-se então os anjinhos
de livro aberto nas mãos
deslizar no ouro dos ares.
Estudaram novas solfas
pelos celestes caminhos
— e cantaram quintanares.

Deixaram cair os versos
que já sabiam de cor
pelos telhados das casas.
E o milagre das cantigas
foi que até os seres perversos
amanheceram com asas.

Cecília Meireles

RETRATO EM LUAR - Cecília Meireles



RETRATO EM LUAR

Meus olhos ficam neste parque,
minhas mãos no musgo dos muros,
para o que um dia vier buscar-me,
entre pensamentos futuros.

Não quero pronunciar teu nome,
que a voz é o apelido do vento,
e os graus da esfera me consomem
toda, no mais simples momento.

São mais duráveis a hera, as malvas,
que a minha face deste instante.
Mas posso deixá-la em palavras,
gravada num tempo constante.

Nunca tive os olhos tão claros
e o sorriso em tanta loucura.
Sinto-me toda igual às árvores:
solitária, perfeita e pura.

Aqui estão meus olhos nas flores,
meus braços ao longo dos ramos:
e, no vago rumor das fontes,
uma voz de amor que sonhamos.

(CECÍLIA MEIRELES)
Do Livro:Retrato Natural - 1949

.


domingo, 1 de junho de 2014

Canção de esconde-esconde - Lila Ripoll



Canção de esconde-esconde

Solidão brinca comigo
um jogo de esconde-esconde.
Desaparece um momento
e surge não sei de onde.

Parece espelho partido
pelo chão esparramado.
Mesmo que não apareça
há o reflexo a meu lado.

Solidão esconde, esconde,
vultos, livros e lembranças.
Entre paredes vazias,
ainda vivo de esperanças.

Solidão se esconde e volta,
mói a vida, o sonho, o amor.
Ai! Jogo de esconde-esconde,
esconde também a dor.

Lila Ripoll

Lagoa - Lila Ripoll



Lagoa

Lagoa velha,
retina pisada
e triste.
Pupila morta
e sem memória.

Verde silêncio
estagnado,
bebendo quieto
o ar da tarde.

Máscara triste
e absoluta.
Espelho cego
onde houve lua.

Rosto de limo,
vidraça fria,
fria vidraça,
ai! limo e limo.

Confrange o olhar
o teu rosto. O ar
ausente. A severa
tristeza. A soledade.

Bebe em silêncio
a tarde. Bebe
o instante de agora.

E deixa a pálpebra
fechar
sobre o teu sonho.

Lila Ripoll

Tão simples! - Lila Ripoll



Tão simples!

Teu nome tão simples
eu não pronuncio,
com medo da chama
que sobe ao meu rosto.

Segredo inviolável,
teu nome tão simples
queimando meus lábios,
ferindo meu peito!

Palavra pequena,
de letras tão fáceis,
parece um suspiro
do vento na noite.

Parece um murmúrio
de asas, de folhas,
de água da chuva
caindo na grama.

Lila Ripoll

PIANO - Lila Ripoll



PIANO

A voz do piano
vem de longe.
De muito longe.
Densa. Espessa.
Lamentosa.

Voz retrospectiva.
Voz saudade.
Às vezes plácida,
modesta. Em confidência.
Mas sempre substância
difícil. Território
escondido. Corredor
de impossível transitar.

Vem de longe a voz
do piano. De muito longe.
Vem como rio na enchente.
Transportando pessoas,
móveis, crianças
com brinquedos,
flores, papeis
e passarinhos mortos.

Vem como um rio na enchente
a voz do piano.

Lila Ripoll

Quietude - Lila Ripoll



Quietude

No arroio quieto,
como são frias
as águas claras!

-Ai! a tristeza
das águas mansas,
dos rostos mansos,
dos risos calmos!

Na superfície
do arroio quieto,
brincando passam
os ventos leves
da primavera.

-Pobre quietude
do arroio claro,
das águas mansas,
dos risos calmos!

Lila Ripoll

TERNURA - Lila Ripoll






TERNURA

Eu te amo com a ternura das mães
que embalam os filhos pequenos.
E te amo sem desejos.

Perto de ti meus sentidos desaparecem.
Meu corpo tem castidades de santa e de menina.

Quando falas nenhuma sombra se interpõe entre nós dois.
Fico presa à palavra de tua boca
e à palavra de teus olhos.
Nada existe fora de nós. Longe de nós...
Tu és o Princípio e o Fim. O Tempo e o Espaço
Cada palavra tua mais espiritualiza
O meu sentimento e a minha ternura.

Tenho vontade de que meus braços se transformem
num grande berço,
para embalar teu sono de homem triste.

Nenhuma estrela brilha mais clara que os teus olhos
na minha alma,
e que a tua palavra no meu coração.

Nenhum homem foi amado com tanta pureza sem pecado
nem tanta adoração!

Nenhuma mulher vestiu de tanta castidade
seu corpo e sua alma,
para a tristeza de um amor que quer viver
e quer morrer.

Lila Ripoll

A noite cai... - Lila Ripoll



A noite cai...

Que tormento ter asas para voar
e prisioneira ser, por toda a vida...
Se eu pudesse fugir, vagar, vagar,
como uma sombra leve, comovida...

Se eu pudesse fugir...(Por que sonhar
impossíveis venturas nesta vida?)
Eu prisioneira sou. Não posso dar
mais sol ao meu destino. Estou perdida

no mistério da vida, sem beleza,
na tortura de ser, na correnteza,
um galho sem vontade, que se vai...

É melhor silenciar... Não penso mais.
É melhor não pensar... Fiquem meus ais
perdidos para sempre... - A noite cai!...

Lila Ripoll

Floresta - Lila Ripoll


Floresta

De olhos fechados
mergulho em teu ventre.
Perfumes se encontram
no meu rosto. Braços
apanham meus cabelos.

Braços leves, pesados,
amorosos ou rudes,
Braços de cedro
ou espinheiro,
de parasitas
ou cravos selvagens.

No ar e na boca
um gosto de erva
amanhecida. Um gosto
de coisa lavada.
Um ar de chuva
e terra. Um gosto
de mundo amanhecendo.

Oh, enveredar
por esse mundo livre
e ser uma entre as árvores
que formam o volume
do teu rosto.

Enveredar por esse mundo livre.
Conhecer a geografia
do teu peito. Misturar-me
à conversa das folhas
e adivinhar o casamento
secreto das raízes!

Lila Ripoll

(o futuro de um pretérito imperfeito) - * líria porto



(o futuro de um pretérito imperfeito)

se eu vestisse o mar tal qual um manto
e nele me abrigasse para sempre
coberta de azul verde ou cinzento
conforme fosse um dia diferente
e tu ouvisses o meu canto de sereia
e tu viesses e entrasses água adentro
morrerias em meu ventre

* líria porto

gueixa - líria porto



gueixa

acaso tu queiras
amor adotivo
manda-me chamar
estou disponível

tu deitas no canto
afago-te a pele
enxugo-te o pranto
cuido dos teus pés

então tu me falas
das tuas fraquezas
ouço-te em silêncio
resguardo segredos

enquanto precises
eu fico a teu lado
depois vou-me embora
e caso encerrado

(se é que tu deixas)

*líria porto

guilhotina - líria porto



guilhotina

rareou os beijos
arredou o corpo

e pé ante pé
sem dizer paulada

foice

* líria porto

na_morada do sol - *líria porto



na_morada do sol

a lua é uma bola uma hóstia uma moeda
um circo um queijo de minas ou tão somente um satélite
com lugar garantido na imensidão do poeta?

*líria porto

condenado - líria porto



condenado

trancafiou o amor
impediu-o de ir e vir
de conhecer-se no espaço
e o pássaro cativo
esqueceu as próprias asas
já não sabe assobiar
ficou triste triste triste
quer sequer comer alpiste
recusa-se a beber água

*líria porto

da poesia - líria porto



da poesia

qualquer vento acende a chispa
(muita alma nessa hora)

*líria porto

para embalar o sono - *líria porto



para embalar o sono

a chuva fininha caiu noite inteira
molhou o telhado desceu pelas calhas
cantava a toada das águas bem-vindas
uma vez eu ouvia outra vez cochilava
e a chuva chovia chovia
enxurrava

*líria porto

ninho de guaxe - *líria porto



ninho de guaxe

muita vez eu fico grávida
gravidez imaginária
e gesto versos

as minhas letras meninas
desajeitadas traquinas
são descabelos

se para muito não servem
já por isso me completam
é bonito ser poeta

nas horas de algum juízo
eu juro para mim mesma
agora chega de rimas

escrever no entanto é vício
eu vivo prenhe do ofício

*líria porto

poliglotas - * líria porto



poliglotas

estou mais para troglodita
mal sei usar minha língua
e o português – ai meu deus
com aqueles bigodões
aquelas sobrancelhas grossas
aquele peito peludo

* líria porto

consumismo - *líria porto



consumismo

aquela mulher miserável
a remexer o lixo
fez-me sentir vergonha
do nosso estilo
de vítima

*líria porto

ariadne - líria porto



ariadne

teu verso é potro indomado
a galopar pela pradaria

vez por outra
bebe água alimenta-se
segue o vento até o horizonte

meu verso é grilo
saltita do chão à parede
aos vasos de folhagem
não ultrapassa o compasso
do círculo do circo
da teia de aranha

teu verso é cabo de aço

o meu
fim de linha

*líria porto

bígamo - Líria Porto



bígamo

o pato tinha duas asas
dois pés e duas patas
:
de pato este pato
não tinha nada

(nadava de braçada)

* Líria Porto

a vida valsa... - *líria porto



a vida valsa
a morte tanga

*líria porto

missionário - Liria Porto



missionário

tal qual um menino
procura brinquedos
lá vai o poeta
a tinta as letras

tal qual passarinho
no uso das asas
lá vai o poeta
o voo as palavras

tal qual a canoa
por cima do rio
lá vai o poeta
o remo a poesia

tal qual marinheiro
no rumo do mar
lá vai o poeta
a bússola o verso

tal qual lavra_dor
na lida da terra
lá vai o poeta
:
lavai o sangue

* líria porto

frenagem - * líria porto



frenagem

com o tempo encurtamos os passos
:
para que pressa se no fim da estrada
a terra nos espera com sua bocarra

* líria porto

em tinta acrílica - Liria Porto



em tinta acrílica

(escorrer do peito
brotar das entranhas
um riacho um leito
todas as montanhas)

caminhar a estrada
percorrer o trilho
com os pés em sangue
misturar nas pedras
luar e martírio

(ter o dom das flores
pelas suas cores
e sugar da terra
o que ela encerra)

tocar as estrelas
extrair o brilho
e com ferro e fogo
produzir minério
areia do rio

(desse parto a fórceps
beber poesia
e num gesto breve
dar-se à luz)

* líria porto

pedregulho - *líria porto



pedregulho

na outra beira da cama
naquela que não estás
eu vou deitar outro homem
e arrancar para sempre
qualquer lembrança de ti
qualquer detalhe capaz
de me fazer infeliz

*líria porto

vento em popa - líria porto




vento em popa

o mar se encrespa
desbalanceia
todas as ondas

mesmo desperta
relembro as águas
do mar que sonho

vem numa concha
molha-me o olho
depois se esconde

pudesse eu ia
viver no mar
sereia ou ilha

e levaria
a minha serra
no tombadilho

* líria porto

reflexão - líria porto



reflexão

juventude é a embalagem onde a alma se esconde
até poder aparecer em sua plenitude

*líria porto

borrão - *líria porto



borrão

a caneta do poeta
fica assim aos borbotões
como se fora um acesso
de raiva tosse ou vômito
quando uma rima indiscreta
movida pelo complexo
ataca de jeito incômodo
e contrapõe-se

*líria porto

pôr de lua - *líria porto



pôr de lua

estou naquela fase
cheia de resumo

foge-me o verso
a rima escapole-me

peço a são jorge
lave-me leve-me

love me

*líria porto

é que a chuva chegou... - *líria porto



é que a chuva chegou e com ela
a alegria da terra e do verde

as sementes estarão dentro em breve
muito diferentes

*líria porto

artesã - Líria Porto




artesã______
nômade cigana
seu destino zanza pelos quatro cantos
para apascentar a inquietude
atalhos de sua alma errante
emenda à colcha de retalhos
coágulos e coágulos
de sangue

* Líria Porto

ébano - líria porto




ébano

quando eu nascer outra vez
quero ser negra retinta
e os meus cabelos pretos
deixá-los à carapinha
brancos só mesmo os dentes
e nos olhos azeviche
carregar a minha áfrica
seu sol ardente sua púrpura

quando eu nascer outra vez
vou dançar com o meu povo
no compasso do batuque
e dentro da pele quente
conduzir-me à altura
da cor e da raça esplêndidas
da beleza de ser gente
no coração - na estatura

*líria porto

desejo - líria porto




desejo

teimam em voar
tremulam as pétalas

flores são borboletas
amarradas pelas pernas

* líria porto

alfinetadas - líria porto




alfinetadas

pontadas na língua atiçam as palavras
afinam a saliva e impedem que o silêncio
expresse suas vontades

*líria porto

Há uma espécie de coma ... - Líria Porto



Há uma espécie de coma
em tudo que é esquecido
a morte ronda as gavetas
do nosso armário embutido

Líria Porto

biografia - líria porto



biografia

na guerra foi concebida
ficou-lhe esta ferida
rasgo no espírito

quando chegou outubro
envolta num manto rubro
quis ser feliz

à meia-noite e meia
na hora da lua cheia
rompeu o escuro

assim nasceu uma bruxa
alma cor de puxa-puxa
nome de flor-de-lis

* líria porto

fatiou-lhe o coração ... - líria porto



fatiou-lhe o coração
comeu-o com palito
depois cuspiu no prato
:
ingrato

*líria porto

deliriar - líria porto



deliriar

de manhã fazer um verso
à tarde com_por um n_ovo
à noite haver-se in_verso
a aninhar-se em alcova

todo poeta andorinha

*líria porto

âncora - líria porto



âncora

mãe era sereia
cheiro de flor e manhã
nove filhotes no canto

pai era mar
ia e vinha
supria a casa de sal
e peixes

eu
grão de areia
existia

* líria porto

estéril - líria porto



estéril

a minha fonte secou
só lhe peço um copo d'água
não há um pingo de orvalho
vida poeira essa vida

não há flores no jardim
minhas palavras murcharam-se
o riso se evaporou
ficou tão crespa a minha alma

plantara tanta ilusão
meus sonhos se desfolharam
já chorei todas as lágrimas
pobres – meus olhos ardem

reclamo um pouco de tudo
e só me resta a mortalha
embrulhada no cantinho
da prateleira do nada

*líria porto

PARA AFOFAR A TERRA - Liria Porto



PARA AFOFAR A TERRA

minha casa era um canteiro
e as quatro flores formosas
perfumavam o ar

o tempo passou cresceram
quiseram ser borboletas
bateram asas

sou jardineiro fiquei
se antes plantava filhos
agora semeio versos

(e cá entre nós - cultivo netos)

Liria Porto

borboletas abanam o pátio... - Liria Porto




borboletas abanam o pátio
nem se lembram dos casulos

iguais pontas de cabelo
cortadas jogadas no lixo
assim são os sofrimentos
depois de livrar-nos deles
nunca mais pedir notícias

felicidade depende
da nossa capacidade
de mesmo sem entendê-las
esquecer as tempestades


Liria Porto

O que nos salva... - Maria Dinorah




O que nos salva
são as eternidades
adivinhas
que logramos captar
nas entrelinhas...


Maria Dinorah


do livro OS GÊMEOS

A hora é uma senhora... - Maria Dinorah




A hora é uma senhora
a nos dizer que é hora.
Mal chega...
e vai embora.

Maria Dinorah


do livro OS GÊMEOS

Que o amor... - Maria Dinorah



Que o amor,
barco, estrela e milagre,
seja o guia da vida.
O mais... é despedida.

Maria Dinorah


do livro OS GÊMEOS 

CONTRAPONTO - Maria Dinorah



CONTRAPONTO

Antagônicas
formas de sentir
os sonhos, o ideal.

No grito incontrolável
dos gramados,
no silêncio contido
do papel.

A diferença
é uma questão frugal,
mas cheia de verdade.

O grito é um segundo...

No papel,
o que ficar escrito
é para a eternidade.

Maria Dinorah


do livro OS GÊMEOS 
(Este poema está no contexto do livro, pois um dos gêmeos jogava futebol (o outro era intelectual))

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Refaz-se a vida... - Maria Dinorah



Refaz-se a vida
a cada instante,
quando o tempo é promessa.

Maria Dinorah


do livro OS GÊMEOS

Precisa-se de um laço... - Maria Dinorah



Precisa-se de um laço.
A sozinhez
é a solidão do abraço.

Maria Dinorah


do livro OS GÊMEOS 

Um segundo de luz... - Maria Dinorah




Um segundo de luz
vale bem mais
do que uma vida inteira
de momentos banais.

Maria Dinorah


do livro OS GÊMEOS 

Entresperas... - Maria Dinorah




Entresperas.
Risco palavras no ar.
Estarei libertando
ou
pondo algemas
nessas fadas
cantantes, milagreiras,
que entre espadas
nos fazem levitar?!

Maria Dinorah


do livro OS GÊMEOS 

Ser lastro e vela... - Maria Dinorah



Ser lastro e vela
na caravela do silêncio.
Ser sombra e voz.
E, sem poder buscar
nem possuir,
se atropelar.
E haja coração!
A vida é devagar;
a gente, não.

Maria Dinorah

do livro OS GÊMEOS 

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