quarta-feira, 30 de julho de 2014

Outras palavras - Marina Colasanti




Outras palavras

Para dizer certas coisas
são precisas
palavras outras
novas palavras
nunca ditas antes
ou nunca
antes
postas lado a lado.
São precisas
palavras que nascem com
aquilo que dizem
palavras que inventaram
seu percurso
e cantam sobre a língua.
Para dizer certas coisas
são precisas palavras
que amanhecem.

Marina Colasanti
em Fino sangue



EU SOU UMA MULHER - Marina Colasanti




EU SOU UMA MULHER

Eu sou uma mulher
que sempre achou bonito
menstruar.

Os homens vertem sangue
por doença
sangria
ou por punhal cravado,
rubra urgência
a estancar
trancar
no escuro emaranhado
das artérias.

Em nós
o sangue aflora
como fonte
no côncavo do corpo
olho-d'água escarlate
encharcado cetim
que escorre
em fio.

Nosso sangue se dá
de mão beijada
se entrega ao tempo
como chuva ou vento.

O sangue masculino
tinge as armas e
o mar
empapa o chão
dos campos de batalha
respinga nas bandeiras
mancha a história.

O nosso vai colhido
em brancos panos
escorre sobre as coxas
benze o leito
manso sangrar sem grito
que anuncia
a ciranda da fêmea.

Eu sou uma mulher
que sempre achou bonito
menstruar.
Pois há um sangue
que corre para a Morte.
E o nosso
que se entrega para a Lua.

Marina Colasanti



Estou de partida.. - Marina Colasanti



Estou de partida. Breve, me mudarei para a curva do teu braço.

Busco a terra sem vento, a mansa terra do teu peito. E a batida surda e quente do magma mais profundo, para embalar o meu sono. Busco a tranqüilidade da enseada. Já conheci as águas que é preciso saber. Fui bem além das colunas de Hércules e há muito descobri que por mais longe o mar, jamais despenca. Sereia, lancei meu canto por entre espumas, encantei marinheiros. E eu própria naveguei, seguindo as estrelas do céu, contando as estrelas do mar, até chegar a portos dos quais nem suspeitava a existência.

Agora é tempo de lançar as tranças na água e deixar que se enlacem nos rochedos, ancorando-me ao meu destino. Escolho o teu lado esquerdo, onde me beija o sol poente. E espero que a tua mão direita amaine as minhas selas. Assim, acima do teu coração, encosto a cabeça. E pequena como um grão, deito raízes. Aprenderei a conhecer-te através da planta dos meus pés, como o cego sabe onde pisa, como o índio conhece a trilha? Se for mansa, a maré das colinas, terei certeza de que dormes, ou pensas em silêncio. Se, de repente, meu solo se encrespar, tangido por um vento só teu, será o frio que te toca. O medo, saberei no tremor subterrâneo. E quando o suor correr farto, enchendo rios sem peixes, ameaçando me levar, será tempo de calor, será o verão cantando na tua pele.

Aprenderei a tatear-te com as mãos, a procurar meus caminhos nos valões dos músculos. Fluirei devagar, dormirei nas axilas. Não preciso de casa. Não preciso de abrigo. A terra da tua carne é quente e nada me ameaça. Posso deitar-me nua, dormir tranqüila, ou ficar acordada, olhando para o alto. O céu é calmo, as nuvens passam, indo a outros lugares. Nenhuma traz a chuva, ou a tempestade. Não preciso de pente, não preciso de panos. O orvalho da tua pele me banha de manhã e a tua respiração arruma os meus cabelos. Só quero um cavalo. Galoparei com ele as dunas do teu corpo, descerei pelos braços, avançarei pelas mãos, arriscando-me à queda nos penhascos dos dedos. Explorarei o teu ventre, matarei a minha sede no poço do teu umbigo. E, armada de desejo, penetrarei na selva dos teus pelos, emaranhada e perfumada noite, delta dos sumos, labirinto que imperioso, me chama e suave, me perde. Só depois, percorridas as pernas, visitados os pés, voltarei corpo acima, ventre, peito, subindo em peregrinação até o pescoço, repousando no vale da omoplata.

Talvez leve um cantil para a dura escalada do teu queixo. Subirei com cuidado, usando como apoio os fios de barba, procurando a caverna das orelhas para repouso e abrigo. Barulho não farei, prometo. Nada que te perturbe. Talvez no dia seguinte, ou mais ainda, passando-se outro dia na difícil subida, eu procure chegar até teus olhos. Se estiverem fechados, sentarei com paciência, esperando o milagre da íris descoberta nascer do olho que se renova a cada despertar, astro de luz, surgindo sob o horizonte da pálpebra. Se estiverem abertos, sentarei à beira deste lago, fonte, olho d'água, encantada com a dança dos reflexos, ilusórios peixes, deslizando suas sombras sob um fundo sem algas. E haverá um momento em que, vencendo o medo, mergulharei na transparência, para nadar em direção ao redemoinho negro da pupila.

A aresta do nariz é perigosa. Eu bem conheço a sua linha sinuosa, sua falsa maciez sobre o duro arcabouço. Não convém que a acompanhe. Seguirei pelo lado, encostando-me às arestas, esgueirando-me para não ser tragada. Não tentarei desvendar o mistério do sopro. À boca, chegarei com respeito. Virei pelo canto, descendo ao lábio inferior, o mais carnudo. Avançarei deitada, rastejando-me de leve na pele úmida, até chegar à borda. E me debruçarei sobre as palavras. Breve me mudo para a curva do teu braço. Não saberei mais de você do que já sei. Nem você saberá mais de mim. Mas talvez assim perto, encostada na raiz do teu ser, eu possa me esquecer de onde começo e me esquecer em ti na minha entrega."

Marina Colasanti
Em Encânticos





De cabeça pensada - Marina Colasanti


De cabeça pensada


Tinha 30 anos quando decidiu: a partir de hoje, nunca mais lavarei a cabeça. Passou o pente devagar nos cabelos, pela última vez molhados. E começou a construir sua maturidade.

Tinha 50, e o marido já não pedia, os filhos haviam deixado de suplicar. Asseada, limpa, perfumada, só a cabeça preservada, intacta com seus humores, seus humanos óleos. Nem jamais se deixou tentar por penteados novos ou anúncios de xampu. Preso na nuca, o cabelo crescia quase intocado, sem que nada além do volume do coque acusasse o constante brotar.

Aos 80, a velhice a deixou entregue a uma enfermeira. A qual, a bem da higiene, levou-a um dia para debaixo do chuveiro, abrindo o jato sobre a cabeça branca.

E tudo o que ela mais havia temido aconteceu.

Levada pela água, escorrendo liquefeitas ao longo dos fios para perderem-se no ralo sem que nada pudesse retê-las, lá se foram, uma a uma, as suas lembranças.

Marina Colasanti
Texto extraído do livro "Contos de Amor Rasgados", Editora, 1986.



ÀS SEIS DA TARDE - Marina Colasanti




ÀS SEIS DA TARDE


Ás seis da tarde
as mulheres choravam
no banheiro.
Não choravam por isso
ou por aquilo
choravam porque o pranto subia
garganta acima
mesmo se os filhos cresciam
com boa saúde
se havia comida no fogo
e se o marido lhes dava
do bom
e do melhor
choravam porque no céu
além do basculante
o dia se punha
porque uma ânsia
uma dor
uma gastura
era só o que sobrava
dos seus sonhos.
Agora
às seis da tarde
as mulheres regressam do trabalho
o dia se põe
os filhos crescem
o fogo espera
e elas não podem
não querem
chorar na condução

Marina Colasanti




VINCENT - Marina Colasanti



VINCENT

Ciprestes de Van Gogh
imóveis labaredas
verdes incêndios sobre a tela
verdes mulheres nuas
em seus cabelos.

Ciprestes de Van Gogh
bizantinas colunas
da paisagem
vórtice
remoinho erguido
como o grito
o fallus
o arremesso de gozo
do pintor.

Marina Colasanti

CANÇÃO PARA UM HOMEM E UM RIO - Marina Colasanti



CANÇÃO PARA UM HOMEM E UM RIO

Porque era um homem sincero
eu o levei ao rio entre junquilhos.
Mas sincero não era
era só homem
e deixei nos junquilhos a esperança
de dar à minha espera serventia.

Porque era um homem forte
eu o levei ao rio entre junquilhos.
Mas forte ele não era
era só homem
e entre pedras deixei o meu desejo
de abandonar o arado, a forja, e a lança.

Porque podia me amar
eu o levei ao rio entre junquilhos.
Mas amante não era
era só homem
e na água afoguei a minha sede
de palavras mais doces que ambrosia.

Porque era um homem
só homem
eu o levei ao rio entre junquilhos.

Marina Colasanti



domingo, 27 de julho de 2014

Confissão Inicial - J.G. de Araújo Jorge



Confissão Inicial

Às vezes, tenho a impressão
de que não devia publicar estas  palavras
nascidas para viverem em surdina
ao teu ouvido.

Às vezes penso que deveria deixar no limbo
do coração
estas palavras de ti e para ti
e que tomaram imprevistamente a forma de canção.

Estas palavras que te colhem toda
e te deixam nua,
e me dão a impressão de que também
tenho nu o coração, em plena rua.

J.G. de Araújo Jorge

E o resto é silêncio... - J.G. de Araújo Jorge



E o resto é silêncio...

E então ficamos os dois em silêncio, tão quietos
como dois pássaros na sombra, recolhidos
ao mesmo ninho,
como dois caminhos na noite, dois caminhos
que se juntam
num mesmo caminho...
.
Já não ouso... já não coras...
E o silêncio é tão nosso, e a quietude tamanha
que qualquer palavra bateria estranha
como um viajante, altas horas...

Nada há mais a dizer, depois que as próprias mãos
silenciaram seus carinhos...

Estamos um no outro
como se estivéssemos sózinhos...

J.G. de Araújo Jorge



DUALIDADE - J.G. de Araújo Jorge



DUALIDADE

Sei que é Amor, meu amor...porque o desejo
o meu próprio desejo tão violento,
dir-se-ia ter pudor, ter sentimento,
quando estás junto a mim, quando te vejo.

É um clarim a vibrar como um harpejo,
misto de impulso e de deslumbramento.
Sei que é Amor, meu amor...porque o desejo
é desejo e ternura a um só momento.

Beijo-te a boca, as mãos, e hei de beijar-te
nessa dupla emoção, (violento e terno)
em que a minha alma inteira se reparte.

- e a perceber em meu estranho ardor,
que há uma luta entre o efêmero e o eterno,
entre um demônio e um anjo em todo Amor!

J. G. de Araujo Jorge



O Lado Bom! - J.G. de Araújo Jorge



O Lado Bom!

Quero ser uma ilha,
um pouco de paisagem,
uma janela aberta,
uma montanha ao longe,
um aceno de mar.

Quando precisares de sonho,
de um canto de beleza,
de um pouco de silêncio,
ou simplesmente
de sol... e de ar...

Quero ser o lado bom
em que pensas,
isto que intimamente
a gente deseja
mas nem sempre diz
- quero ser, naquela hora,
o que sentes falta
para seres feliz...

Que quando pensares
em fugir de todos
ou de ti mesma, enfim,
penses em mim...

J. G. de Araújo Jorge



Acordeon - J.G. de Araújo Jorge





Acordeon

Quando te tenho sobre os joelhos
penso que sei tocar Acordeon,
e brotam notas dos meus dedos
que eu sei bem que tu ouves
porque os teus olhos estão dançando um tango.


 J. G . de Araujo Jorge - coletânea -
"Poemas do Amor Ardente"

Mãos... - J.G. de Araújo Jorge




Mãos...

Como aves desarvoradas
Depois de roteiros vãos
Tuas mãos vieram, cansadas,
Se aninhar em minhas mãos...

Há momentos... Acontece...
Puro, o amor pode ficar,
Como duas mãos em prece,
Esquecidas, a rezar...

Quando maior é o carinho
Às vezes, tenho a impressão
De que conversam baixinho...
Tua mão... em minha mão...

J.G. de Araujo Jorge

Cantiga do Só - J.G. de Araújo Jorge



Cantiga do Só

Sem papel
escreveria como Anchieta à Virgem
nas areias brancas.

Sem praias, rabiscaria as paredes
ou riscaria o chão.
Sem chão, em suspenso, no espaço,
sem nada ver, sem nada encontrar,
ainda assim eu comporia
no ar,
no coração.

Se penso, ou sinto,
a emoção é palavra
e o silêncio é canção
ou hino.

- Que fazer?
É o meu destino.

JG de Araújo Jorge



Dedicatória - J.G. de Araújo Jorge



Dedicatória

Este meu livro é todo teu, repara
que ele traduz em sua humilde glória
verso por verso, a estranha trajetória
desta nossa afeição ciumenta e rara.

Beijos, saudades, sonhos... Nem notara
tanta coisa afinal na nossa história...
E este verso, — é a feliz dedicatória
onde a minha alma inteira se declara...

Abre este livro... E encontrarás então
teu coração de amor rindo e cantando,
cantando e rindo com o meu coração...

E se o leres mais alto, quando a sós,
é como se estivesses me escutando
falar de amor com a tua própria voz!

José Guilherme de Araújo Jorge



Quando chegares - J.G. de Araújo Jorge





Quando chegares

Não sei se voltarás sei que te espero.
Chegues quando chegares,
ainda estarei de pé, mesmo sem dia,
mesmo que seja noite, ainda estarei de pé.

A gente sempre fica acordado nessa agonia,
à espera de um amor que acabou sendo fé...

Chegues quando chegares,
se houver tempo, colheremos ainda frutos,
como ontem, a sós;
se for tarde demais, nos deitaremos à sombra e
perguntaremos por nós...

José Guilherme de Araújo Jorge


ADORMECIDO NO VALE - Arthur Rimbaud




ADORMECIDO NO VALE

É um vão de verdura onde um riacho canta
A espalhar pelas ervas farrapos de prata
Como se delirasse, e o sol da montanha
Num espumar de raios seu clarão desata.

Jovem soldado, boca aberta, a testa nua,
Banhando a nuca em frescas águas azuis,
Dorme estendido e ali sobre a relva flutua,
Frágil, no leito verde onde chove luz.

Com os pés entre os lírios, sorri mansamente
Como sorri no sono um menino doente.
Embala-o, natureza, aquece-o, ele tem frio.

E já não sente o odor das flores, o macio
Da relva. Adormecido, a mão sobre o peito,
Tem dois furos vermelhos do lado direito.

Arthur Rimbaud



SENSAÇÃO - Arthur Rimbaud




SENSAÇÃO

Nas belas tardes de verão, pelas estradas irei,
Roçando os trigais, pisando a relva miúda:
Sonhador, a meus pés seu frescor sentirei:
E o vento banhando-me a cabeça desnuda.

Nada falarei, não pensarei em nada:
Mas um amor imenso me irá envolver,
E irei longe, bem longe, a alma despreocupada,
Pela Natureza — feliz como com uma mulher.

Arthur Rimbaud

O BARCO ÉBRIO - Arthur Rimbaud



O BARCO ÉBRIO

E desde então no Poema do Mar mergulhei,
Cheio de astros, latescentes, devorando
Os verdes céus, onde às vezes se vê,
Lívido e feliz, um sonhador boiando.

Onde tingindo de repente o infinito, delírios
E ritmos lentos sob o dia em esplendor
Mais fortes que o álcool, mais vastos que nossas liras,
Fermentam as sardas amargas do amor!

Sei dos céus rasgando-se em raios, e das trombas,
Das ressacas e da noite e das correntes,
Da Alba exaltada igual a um bando de pombas,
E o que o homem acreditou ver viram meus olhos videntes!

Oh, que minha quilha estoure! Que eu ganhe o mar!

E se anseio mares de Europa, é a poça
Escura e fria onde ao crepúsculo perfumado
Uma criança se abaixa triste e solta
Qual borboleta de maio um barco delicado.

Arthur Rimbaud



Eu abracei a aurora de verão. - Arthur Rimbaud





Eu abracei a aurora de verão.

Nada ainda se mexia na fachada dos palácios. A água estava
morta. Acampamentos de sombras não deixavam a trilha do
bosque. Eu marchava, despertando hálitos vivos e cálidos, e as
pedrarias espiavam, e as alas se levantavam sem um som.
A primeira missão foi, num atalho já cheio de centelhas frescas
e pálidas, uma flor que me disse seu nome.
Sorri para a loira wasserfall que se descabelava através dos
pinheiros; reconheci a deusa no cimo de prata.

Então, um a um, levantei os véus. Nas alamedas, agitando os
braços. Pela planície, onde a denunciei ao galo. Na cidade grande
ela fugia entre cúpulas e campanários, e correndo como um
mendigo entre docas de mármore, eu a caçava.
No alto da trilha, perto de um bosque de louros, eu a envolvi
com seu monte de véus e senti um pouco seu corpo imenso. A
aurora e a criança caíram na beira do bosque.
Ao acordar, meio-dia.

Arthur Rimbaud in Iluminuras

Tradução: Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça





Minha Boemia - Arthur Rimbaud



Minha Boemia
(fantasia)

Eu caminhava, as mãos soltas nos bolsos gastos;
O meu paletó não era bem o ideal;
Ia sob o céu, Musa! Teu amante leal;
Ah! E sonhava mil amores insensatos

Minha única calça tinha um largo furo.
Pequeno Polegar, eu tecia no percurso
Um rosário de rimas. A Grande Ursa,
O meu albergue, brilhava no céu escuro.

Sentado na sargeta, só, eu a ouvia
Nessa noite de setembro em que sentia
O odor das rosas, que vinho vigoroso!

Ali, entre inúmeros ombros fantásticos,
Rimava com a débil lira dos elásticos
De meus sapatos, e o coração doloroso!

Arthur Rimbaud




No Cabaré-Verde - Arthur Rimbaud



No Cabaré-Verde
às cinco horas da tarde


Depois de oito dias, larguei as botinas
Pelo caminho. Eu entrei em Charleroi.
— No Cabaré-Verde: pedi torradas finas,
Manteiga e presunto, que é frio o lugar.

Feliz, estiquei as pernas sob a mesa
Verde: e contemplei os toscos motivos
Da tapeçaria. — E foi uma beleza
Quando a vi, enormes tetas, olhos vivos,

É ela! Não é um beijo que a apavora!
Risonha, trouxe a refeição na hora,
O presunto tostado, num belo prato,

O presunto róseo e branco perfumado
Pelo alho — e encheu-me o copo ávido
De espuma brilhante como um raio de sol.


Arthur Rimbaud
Outubro de 1870



Baile dos Enforcados(fragmento) - Arthur Rimbaud



Baile dos Enforcados
(fragmento)


Dançam, dançam os paladinos,
Os magros paladinos do diabo,
Os esqueletos dos Saladinos.


Arthur Rimbaud

Outra Tradução - Arthur Rimbaud



Outra Tradução

Ela foi encontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar misturado
Ao sol.

Minha alma imortal,
Cumpre a tua jura
Seja o sol estival
Ou a noite pura.

Pois tu me liberas
Das humanas quimeras,
Dos anseios vãos!
Tu voas então...

— Jamais a esperança.
Sem movimento.
Ciência e paciência,
O suplício é lento.

Que venha a manhã,
Com brasas de satã,
O dever
É vosso ardor.

Ela foi encontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar misturado
Ao sol.

Arthur Rimbaud





sexta-feira, 4 de julho de 2014

SÍMBOLOS - Gilka Machado




SÍMBOLOS


Eu e tu, ante a noite e o amplo desdobramento
do mar, fero a estourar de encontro à rocha nua...
Um símbolo descubro aqui, neste momento
esta rocha, este mar... a minha vida e a tua.

O mar vem, o mar vai, nele há o gesto violento
de quem maltrata e, após, se arrepende e recua.
Como compreendo bem da rocha o sentimento!
São muito iguais, por certo, a minha mágoa e a sua.

Contemplo neste quadro a nossa triste vida;
tu és esse dúbio mar que, na sua inconsciência,
tem carinhos de amor e fúrias de demência!

Eu sou a dor estanque, a dor empedernida,
sou a rocha a emergir de um côncavo de areia,
imóvel, muda, isenta e alheia ao mar, alheia.

Gilka Machado




Odor dos manacás - Gilka Machado




Odor dos manacás


De onde vem esta voz, este fundo lamento
com vagas vibrações de violino em surdina?
De onde vem esta voz que, nas asas, o vento
me traz, na hora violácea em que o dia declina?

Esta voz vegetal, que o meu olfato atento
ouve, certo é a expansão de uma mágoa ferina,
é o odor que os manacás soltam, num desalento,
sempre que a brisa os plange e as frondes lhes inclina.

Creio, aspirando-o, ouvir, numa metempsicose,
a alma errante e infeliz de uma extinta criatura
chamar ansiosamente outra alma que a despose...

Uma alma que viveu sozinha e incompreendida,
mas que, mesmo gozando uma vida mais pura,
inda chora a ilusão frustrada noutra vida.

Gilka Machado



Quadras simples - Gilka Machado




Quadras simples

Ó Lua, velha fiandeira
que andas molemente a fiar,
às vezes a noite inteira,
o linho branco do luar!

Porque eu tanto assim te queira,
por tanto, Lua te amar,
dá-me na hora derradeira,
uma mortalha de luar.

Certo, nas noites de Lua,
tua alma errante de poeta,
em pleno espaço flutua
numa escalada secreta.

E, ao pálio que a Lua espalma,
buscando a tua encontrar,
dentro da noite a minha alma
se eleva, tateando no ar.

Há-de, com toda a certeza,
casar-se a minha alma à tua,
nessa capelinha acesa,
na alva capela da Lua.

E, como um monge velhinho,
rezando trêmulo, o luar,
há-de, com todo o carinho,
o nosso enlace abençoar.

Assim, pelas noites calmas,
num leve e místico abraço,
poderão as nossas almas
unir-se, ao menos, no espaço.

In "Cristais Partidos

Gilka Machado



Bailado das ondas - Gilka Machado





Bailado das ondas


Vede-as, ei-las que vêm- eternas bailarinas
para a festa noturna e fádica do luar,
segue-as o coro alegre e álacre das ondinas:
vede-as, ei-las que vêm, todas juntas, bailar.

Seios nus, braços nus que flavas serpentinas
cingem, abstratas mãos de brancura polar,
surgem, despetalando orquídeas argentinas
sobre a pelúcia azul do tapete do mar.

De quando em vez, na praia, uma a sorrir se apruma
desliza, rodopia e alva como de espuma
desnastra, erguendo o corpo em bamboleios no ar.

E a lua, entre coxins, muito pálida e loura,
em serena mudez de nobre espectadora,
pelas ondas alonga o indiferente olhar

Gilka Machado



Troversando - Gilka Machado



Troversando


Do sucesso na subida
nunca te orgulhes demais
muito difícil na vida
é conservar o cartaz

(...)

Eu não explico a ninguém
pois ainda não compreendi
porque te chamo meu bem
se sofro tanto por ti.

(...)

Entre nuvens no infinito,
sofro a prisão mais prisão...
Sinto-me pássaro aflito
na gaiola de um avião.

Não rias do que te digo
mas sempre na nossa alcova
eu quisera estar contigo
como escova sobre escova.

(...)

Do meu coração me espanto!
O amor só me deu pesar,
como tendo amado tanto
tenho ainda amor para dar?!...

Gilka Machado




Pelo telefone - Gilka Machado




Pelo telefone

Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás;
amo-te pelo enigma pertinaz
que em ti me atrai e me intimida,
por essa música mendaz
de tua voz
que alvoroçou minha audição
e me vem desviando a vida
de seu destino de solidão.

Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás…
Fala-me sempre,
mente mais;
não te posso exprimir o pavor que me invade,
as aflições que me consomem,
ao meditar na triste realidade
de que deve ser feita
essa tua alma de homem.

Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás,
audaz
desconhecido;
tua palavra mente ao meu ouvido,
mas não mente essa voz que me treslouca!
— Ela é o amor que me chama por tua boca,
num apelo tristonho,
de saudade;
é a exortação do sonho
à minha rara sensibilidade.
Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás:
amo a ilusão que tua voz me traz.
a falsidade em que procuro crer.

Fala-me sempre, mente mais,
que de mim só mereces tanto apreço,
ó nebuloso, porque desconheço
as humanas misérias de teu ser!

Mas nesta solidão a que me imponho,
quando quedo em silêncio
a te aguardar a voz,
como se torna teu enigma atroz,
que ânsia de estrangular este formoso sonho,
de transpor os espaços,
de bem te conhecer,
de me atirar depressa,
inteira,
nos teus braços,
de te possuir só para te esquecer!…

Gilka Machado



Chuva de cinzas - Gilka Machado




Chuva de cinzas


na estática mudez da Terra triste e viúva;
e, da tarde ao cair, sinto, minha alma, agora,
embuça-se na cisma e no torpor se enluva.

Hora crepuscular, hora de névoas, hora
em que de bem ignoto o humano ser enviúva;
e, enquanto em cinza todo o espaço se colora,
o tédio, em nós, é como uma cinérea chuva.

Hora crepuscular - concepção e agonia,
hora em que tudo sente uma incerteza imensa,
sem saber se desponta ou se fenece o dia;

hora em que a alma, a pensar na inconstância da sorte,
fica dentro de nós oscilando, suspensa
entre o ser e o não ser, entre a existência e a morte.

Gilka Machado



Saudade - Gilka Machado



Saudade


De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?

De quem é esta saudade,
de quem?

Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo...

E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo...

De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?

Gilka Machado


Fecundação - Gilka Machado



Fecundação

Teus olhos me olham
longamente,
imperiosamente...
de dentro deles teu amor me espia.

Teus olhos me olham numa tortura
de alma que quer ser corpo,
de criação que anseia ser criatura

Tua mão contém a minha
de momento a momento:
é uma ave aflita
meu pensamento
na tua mão.

Nada me dizes,
porém entra-me a carne a persuasão
de que teus dedos criam raízes
na minha mão.

Teu olhar abre os braços,
de longe,
à forma inquieta de meu ser;
abre os braços e enlaça-me toda a alma.

Tem teu mórbido olhar
penetrações supremas
e sinto, por senti-lo, tal prazer,
há nos meus poros tal palpitação,
que me vem a ilusão
de que se vai abrir
todo meu corpo
em poemas.

Gilka Machado


Amei o Amor - Gilka Machado




Amei o Amor


Ansiei o Amor.
Sonhei-O
Uma vez, outra vez (Sonhos Insanos)!
E desespero haja maior não creio
Que o da esperança dos primeiros anos.

Guardo nas mãos, nos lábios
guardo em meio do meu silêncio, aquém dos olhos profanos,
Carícias virgens, para quem não veio
E não virá saber dos meus arcanos

Desilusão tristíssima, de cada momento
Infausta e merecida sorte
de ansiar o Amor e nunca ser Amada

Meu beijo intenso e meu abraço forte
com que pesar penetrareis o Nada
levando tanta vida para a Morte...

Gilka Machado


Lépida e leve - Gilka Machado




Lépida e leve

em teu labor que, de expressões à míngua,
o verso não descreve...
Lépida e leve,
guardas, ó língua, em teu labor,
gostos de afago e afagos de sabor.

És tão mansa e macia,
que teu nome a ti mesma acaricia,
que teu nome por ti roça, flexuosamente,
como rítmica serpente,
e se faz menos rudo,
o vocábulo, ao teu contacto de veludo.

Dominadora do desejo humano,
estatuária da palavra,
ódio, paixão, mentira, desengano,
por ti que incêndio no Universo lavra!...
és o réptil que voa,
o divino pecado
que as asas musicais, às vezes, solta, à toa.
e que a Terra povoa e despovoa,
quando é de seu agrado.

Sol dos ouvidos, sabiá do tato,
ó língua-idéia, ó língua-sensação,
em que olvido insensato,
em que tolo recato,
te hão deixado o louvor, a exaltação!

– Tu que irradiar pudeste os mais formosos poemas!
– Tu que orquestrar soubeste as carícias supremas!
Dás corpo ao beijo, dás antera à boca, és um tateio de
alucinação, és o elatério da alma... Ó minha louca
língua, do meu Amor penetra a boca,
passa-lhe em todo senso tua mão,
enche-o de mim, deixa-me oca...
– Tenho certeza, minha louca,
de lhe dar a morder em ti meu coração!...

Língua do meu Amor velosa e doce,
que me convences de que sou frase,
que me contornas, que me vestes quase,
como se o corpo meu de ti vindo me fosse.
Língua que me cativas, que me enleias
ou surtos de ave estranha,
em linhas longas de invisíveis teias,
de que és, há tanto, habilidosa aranha...

Língua-lâmina, língua-labareda,
língua-linfa, coleando, em deslizes de seda...
Força inferia e divina
faz com que o bem e o mal resumas,
língua-cáustica, língua-cocaína,
língua de mel, língua de plumas?...

Amo-te as sugestões gloriosas e funestas,
amo-te como todas as mulheres
te amam, ó língua-lama, ó língua-resplendor,
pela carne de som que à idéia emprestas
e pelas frases mudas que proferes
nos silêncios de Amor!...

Gilka Machado



Embora de teus lábios afastada - Gilka Machado




Embora de teus lábios afastada

"Embora de teus lábios afastada
(Que importa ? - Tua boca está vazia ...)
Beijo esses beijos com que fui beijada,
Beijo teus beijos, numa nova orgia.

Inda conservo a carne deliciada
Pela tua carícia que mordia,
Que me enflorava a pele, pois, em cada
Beijo dos teus uma saudade abria.

Teus beijos absorvi-os, esgotei-os :
Guardo-os nas mãos, nos lábios e nos seios,
Numa volúpia imorredoura e louca.

Em teus momentos de lubricidade,
Beijarás outros lábios, com saudade
Dos beijos que roubei de tua boca."

Gilka Machado


ALMAS BORBOLETAS - Gilka Machado



ALMAS BORBOLETAS

Há certas almas como as borboletas
cuja fragilidade de asas nao resiste ao mais leve contato,
que deixam ficar pedaços pelos dedos que as tocam.
Em seu vôo de ideal, deslumbram olhos, atraem a vista:
perseguem-nas, alcançam-nas,
detém-nas, mas quase sempre,
por saciedade, ou piedade, libertam-nas outras vezes.
Elas, porém, nao voam como dantes,
ficam vazias de si mesmas cheias de desalento...
Almas e borboletas, nao fosse a tentaçao das cousas rasas -
o amor do néctar -o néctar do amor,
e pairaríamos nos cimos seduzindo do alto admirando de longe!...

Gilka Machado

Insone - Gilka Machado



Insone

Noite feia. Estou só. Do meu leito no abrigo
cai a luz amarela e doentia do luar;
tediosa os olhos fecho, a ver, se assim consigo,
por momentos sequer o sono conciliar.

Da janela transponho o entreaberto postigo
entra um perfume humano impelido pelo ar...
"És tu meu casto Amor? és tu meu doce amigo,
que a minha solidão agora vens povoar?

A insônia me alucina; ando num passo incerto:
"és tu que vens... és tu!- Reconheço este odor..."
Corro à porta, escancaro-a: acho a Treva e o Deserto.

E este aroma que é teu, aspirando, suponho
que a essência da tua alma, ó meu divino amor!
para mim se exalou no transporte de um sonho.

Gilka Machado



Olhando o mar - Gilka Machado


Olhando o mar


Sempre que fito o mar
tenho a ilusão de achar-me diante
de um silêncio amplo, ondulante,
de um silêncio profundo,
onde vozes lutassem por gritar,
por lhe fugirem do invisível fundo.

Diante do mar eu fico triste,
nessa mudez de quem assiste
reproduções do próprio dissabor;
diante do mar eu sou um mar,
a outro de apor
e a se indeterminar.

O mar é sempre monotonia,
na calmaria
ou na tempestade.
Fujo de ti, ó mar que estrondas!
porque a tristeza que me invade
tem a continuidade
das tuas ondas...

Mas te amo, ó mar, porque minha alma e a tua
são bem iguais: ambas profundamente
sensíveis, e amplas, e espelhantes;
nelas o ambiente
atua
apenas superficialmente...

Calma de cismas, de êxtases, de sonhos,
desesperos medonhos,
ânsias de azul, de alturas...
- Longos ou rápidos instantes
em que me transfiguro, em que te transfiguras...
Nos nossos sentimentos sem represa,
nas nossas almas, quanta afinidade!
- Tu sentindo por toda a natureza!
- Eu sentindo por toda a humanidade!

Nos dias muito azuis, o meu olhar,
atento,
a descer e a se elevar,
supõe o mar um espreguiçamento
do céu e o céu um êxtase do mar.

Há nos ritmos da água
marinha uma poesia, a mais completa,
essa poesia universal da mágoa.

O mar é um cérebro em laboração,
um cérebro de poeta;
nas suas ondas, vêm e vão
pensamentos, de roldão.

O mar,
imperturbavelmente, a rolar, a rolar...
O mar... - Concluo sempre que metido
em sua profundeza e em sua vastidão:
- o mar é o corpo, é a objetivação
do espaço, do infinito.

Gilka Machado



O retrato fiel - Gilka Machado



O retrato fiel


Não creias nos meus retratos,
nenhum deles me revela,
ai, não me julgues assim!

Minha cara verdadeira
fugiu às penas do corpo,
ficou isenta da vida.

Toda minha faceirice
e minha vaidade toda
estão na sonora face;

naquela que não foi vista
e que paira, levitando,
em meio a um mundo de cegos.

Os meus retratos são vários
e neles não terás nunca
o meu rosto de poesia.

Não olhes os meus retratos,
nem me suponhas em mim.

Gilka Machado



quinta-feira, 3 de julho de 2014

Estes sãos os dias... - Emily Dickinson



Estes sãos os dias em que os pássaros voltam.
Muito poucos, apenas um ou dois
Para dar uma olhada para trás.

Estes são os dias em que os céus retornam
Aos velhos – velhos sofismas de Junho
Em mistificação azul e ouro

Ó fraude que não consegue enganar a Abelha
A sua plausibilidade
Quase me faz acreditar

Até que as sementes aparecem
Sopradas, suavemente, pelo vento
E escapa uma folha tímida

Oh, Sacramento dos dias de verão,
Oh, Última Comunhão na névoa
Permite que mais um filho se junte

Para compartilhar de emblemas sagrados
Comendo de seu pão abençoado
E bebendo de seu vinho imortal.

Emily Dickinson




Dentre todas as Almas já criadas - Emily Dickinson


Dentre todas as Almas já criadas


Dentre todas as Almas já criadas -
Uma - foi minha escolha -
Quando Alma e Essência - se esvaírem -
E a Mentira - se for -

Quando o que é - e o que já foi - ao lado -
Intrínsecos - ficarem -
E o Drama efêmero do corpo -
Como Areia - escoar -

Quando as Fidalgas Faces se mostrarem -
E a Neblina - fundir-se -
Eis - entre as lápides de Barro -
O Átomo que eu quis!


Emily Dickinson
(Tradução: José Lira)





ALGO EXISTE - Emily Dickinson



ALGO EXISTE


Algo existe num dia de verão,
No lento apagar de suas chamas,
Que me impele a ser solene.
Algo, num meio-dia de verão,
Uma fundura – um azul – uma fragrância,
Que o êxtase transcende.
Há, também, numa noite de verão,
Algo tão brilhante e arrebatador
Que só para ver aplaudo -
E escondo minha face inquisidora
Receando que um encanto assim tão trêmulo
E sutil, de mim se escape.

Emily Dickinson

Tradução de Lúcia Olinto

Alguns guardam o Domingo... - Emily Dickinson



Alguns guardam o Domingo indo à Igreja
Eu o guardo ficando em casa
Tendo um Sabiá como cantor
E um Pomar por Santuário.
Alguns guardam o Domingo em vestes brancas
Mas eu só uso minhas Asas
E ao invés do repicar dos sinos na Igreja
Nosso pássaro canta na palmeira.
É Deus que está pregando, pregador admirável
E o seu sermão é sempre curto.
Assim, ao invés de chegar ao Céu, só no final
Eu o encontro o tempo todo no quintal.

Emily Dickinson

A bela de Amherst - Emily Dickinson



A bela de Amherst

Ela varre com vassouras multicores
E sai espalhando fiapos,
Ó Dona arrumadeira do crepúsculo,
Volta atrás e espana os lagos:

Deixaste cair novelo de púrpura,
E acolá um fio de âmbar,
Agora, vejam, alastras todo o leste
Com estes trapos de esmeralda!

Inda a brandir vassouras coloridas,
Inda a esvoaçar aventais,
Até que as piaçabas viram estrelas —
E eu me vou, não olho mais.

Emily Dickinson



NUNCA VI O CÉU - Emily Dickinson



NUNCA VI O CÉU

Nunca vi um campo de urzes.
Também nunca vi o mar.
No entanto sei a urze como é,
Posso a onda imaginar.

Nunca estive no Céu,
Nem vi Deus. Todavia
Conheço o sítio, como se
Tivesse em mãos um guia.

Emily Dickinson
(Trad. de Manoel Bandeira).



Cemitério - Emily Dickinson



Cemitério

Este pó foram damas, cavalheiros,
Rapazes e meninas;
Foi riso, foi espírito e suspiro,
Vestidos, tranças finas.
Este lugar foram jardins que abelhas
E flores alegraram.
Findo o verão, findava o seu destino...
E como estes, passaram.

Emily Dickinson


Eu me escondi em minha flor... - Emily Dickinson




Eu me escondi em minha flor
Que em teu peito desfalecia.
Sem o saber me consumias –
E o mais,só os anjos o dirão.


Eu me escondi em minha flor
Que em tua jarra fenecia.
Sem perceber por mim sentias
Uma quase solidão.

Emily Dickinson


O coração tem... - Emily Dickinson




O coração tem bordas estreitas
E, feito o mar, se mensura
Por um poderoso baixo contínuo
E monotonia azul

Até que um furacão o seccione
E, enquanto descobre
Seu insuficiente espaço,
Aprende em convulsões

Que a calmaria é tão-só muralha
De intocada gaze:
A pressão de um instante a destrói,
Um questionamento a esgarça.

Emily Dickinson
- Tradução de Ivo Bender -

Esperança... - Emily Dickinson




Esperança é aquilo
que tem plumas –
que se empoleira
na alma

e canta canção
sem palavras –
e nunca para,
nunca.

Emily Dickinson

As manhãs estão mais suaves... - Emily Dickinson




As manhãs estão mais suaves,
Mais sazonadas, as nozes;
Os mirtilos, mais carnudos,
E ausente se encontra a rosa.

O bordo ostenta um lenço mais alegre,
A campina, uma saia escarlate;
Para não estar fora de moda,
Vou tratar de me enfeitar.

Emily Dickinson

Bem pouco a fazer... - Emily Dickinson




Bem pouco a fazer tem o pasto:
Reino de irrestrito verde,
Só tem borboletas para criar,
e abelhas para entreter -

E ondular o dia inteiro aos sons
Que a brisa consigo arrasta;
Cumprimentar a todas as coisas
E embalar, ao colo, a luz solar -

Fazer com rocio, à noite, colares de pérola,
Compostos com tal requinte,
Que uma fidalga não saberia
Perceber a diferença -

E acabar-se, ao fenecer,
Por entre aromas divinais
De especiarias dormidas
Ou de agonizantes nardos -

Quedar-se, por fim, em nobres celeiros
E, pelo sonho, levar a escoar-se o tempo;
Bem pouco a fazer tem o pasto,
Feno eu quisera ser -


Emily Dickinson



LOUCURA LÚCIDA - Helena Kolody



LOUCURA LÚCIDA
1988

Pairo, de súbito,
noutra dimensão

Alucina-me a poesia,
loucura lúcida.

Helena Kolody

VÔO CEGO - Helena Kolody



VÔO CEGO

Em vôo cego,
singro o nevoeiro.
Onde o radar que me guie?

Perco-me em labirintos interiores.
Que mistérios defendem
tantas portas seladas?

Quem me cifrou em enigmas?

Helena Kolody



JOVEM - Helena Kolody



JOVEM

Suporta o peso do mundo.
E resiste.

Protesta na praça.
Contesta.
Explode em aplausos.

Escreve recados
nos muros do tempo.
E assina.

Compete
no jogo incerto da vida.

Existe.

Helena Kolody

OSCILAÇÃO - Helena Kolody



OSCILAÇÃO

A cada oscilar do pêndulo
algo se apaga
ou para nós termina.

De segundo em segundo,
algo germina
ou para nós floresce.

Helena Kolody

EXILADOS - Helena Kolody



EXILADOS

Ensimesmados,
olham a vida
como exilados
fitando o mar.

Não estão no mundo
como quem o habita.
Estão de visita
num planeta estranho.

Helena Kolody

ANTES - Helena Kolody



ANTES

Antes que desça a noite,
imprimir na retina
os rostos amados,
o sol
as cores,
o céu de outono
e os jardins da primavera.

Inundar de sons
de vozes
e de música eterna
os ouvidos
antes que os atinja
a maré do silêncio.

Conquistar
os pontos culminantes
da vida,
antes que se esgote
o prazo de permanência
em seu território sagrado.

Helena Kolody



HAI-KAIS - Helena Kolody





HAI-KAIS

Deus dá a todos uma estrela.
Uns fazem da estrela um sol.
Outros nem conseguem vê-la.

Arco-íris no céu.
Está sorrindo o menino
que há pouco chorou.

Trêmula gota de orvalho
Presa na teia de aranha,
Rebrilhando como estrela.

Festa das Lanternas!
Os ipês estão luzindo
De globos cor-de-ouro.

Corrida no parque.
O menino inválido
aplaude os atletas.

Nas flores do cardo,
leve poeira de orvalho.
Manhã no deserto.

O brilho da lâmpada,
no interior da morada,
empalidece as estrelas.

A morte desgoverna a vida.
Hoje sou mais velha
que meu pai.

Helena Kolody



ALEGRIA DE VIVER - Helena Kolody




ALEGRIA DE VIVER
1987

Amo a vida.
Fascina-me o mistério de existir.

Quero viver a magia
de cada instante,
embriagar-me de alegria.

Que importa a nuvem no horizonte,
chuva de amanhã?
Hoje o sol inunda o meu dia.

Helena Kolody

FLAMA - Helena Kolody



FLAMA

Na flama divina
que em nós resplandece,
palpita a alegria
de ser para sempre.

Helena Kolody

ABISMAL - Helena Kolody




ABISMAL

Meus olhos estão olhando
De muito longe, de muito longe,
Das infinitas distâncias
Dos abismos interiores.
Meus olhos estão a olhar do extremo longínquo
Para você que está diante de mim.
Se eu estendesse a mão, tocaria a sua face.

Helena Kolody

Devaneio - Helena Kolody



Devaneio

No silêncio interior,
a alma sonâmbula
põe-se a dançar.
A sombra de seu bailado
traça leves arabescos
na face do sonho
e desperta as palavras da canção.

Helena Kolody

Evolução - Helena Kolody



Evolução

Caem as folhas de repente,
brotam outras pelos ramos,
murcham flores, surgem pomos
e a planta volta à semente.

Assim somos. Sutilmente,
diferimos do que fomos.

Impossível transmitir,
por secreto e singular,
o acrescentar e perder
desse crescer que é mudar.

Helena Kolody

Sintonia - Helena Kolody




Sintonia

Desejo de estar presente
na vibração deste agora
de inquietação e procura,
coragem e afirmação.

Bem dentro do coração
que supera o sofrimento.

Estar no exato momento
em que o pensar se libera
de suas grades e muros.

Contagiar-se de espera.
Lavrar os dias futuros.

Helena Kolody

O Peixe - Artur da Távola




O Peixe

Cego e sagaz
tudo vê e nada sabe.
Mudo e falaz
é lâmina sem espada,
folha elegante de matéria
do abissal silêncio onde reina sem querer.

O peixe cumpre rituais
que desconhece.
Pecilotérmico,
é faca, escama, escuna
de peso levitado e fléxil.
Respiração sem ar.
O peixe escamoteia a inércia
e re-inaugura
a gratuidade do movimento
que o conduz à não direção
onde se esconde, copula,
e consome o invisível.

Artur da Távola


Soneto Inascido - Artur da Távola



Soneto Inascido

O poema subjaz.
Insiste sem existir
escapa durante a captura
vive do seu morrer.
O poema lateja.
É limbo, é limo,
imperfeição enfrentada,
pecado original.
O poema viceja no oculto
engendra-se em diluição
desfaz-se ao apetecer.
O poema poreja flor e adaga
e assassina o íncubo sentido.
Existe para não ser.

Artur da Távola

Alma dos diferentes - Artur da Távola



Alma dos diferentes

A alma dos diferentes é feita de uma luz além.
Sua estrela tem moradas deslumbrantes que
eles guardam para os poucos capazes
de sentir e de entender.
Nessas moradas estão tesouros
da ternura humana.
De que só os diferentes são capazes.
Não mexa com o amor de um diferente.
A menos que você seja suficientemente forte
para suporta-lo depois.

Arthur da Távola

Tempo - Artur da Távola



Tempo

Hoje eu sou poesia,
Pedaço de nuvem
Nas mãos do teu dia.
Eu sou amargura,
Espaço de espanto
Num céu de loucura.
Hoje eu quero ser jardim,
Temporada de espanto
No sorriso de teu sim.
Agora vai ser a vez
Da esperança sem lança,
Da amizade sem força,
Do afago sem sexo,
Do sexo sem falsa noção de esmagar.
Chegou o tempo
De ser
E amar.

Artur da Távola

Autismo - Artur da Távola





Autismo

O tédio que não revelo
resvala e vala na taquicardia
do sorriso emoliente
em minha ativa participação.
A morte, amiga de infância,
palpita vida na força do meu viver.
Sou segredos, dons, acasos e órfão,
silenciados em músicas e pickles.
Meu menino, a cirurgia, aquele cão, o não,
a morte do pai e minha irmã
moram anônimos
no quarto e sala da alma.
Falo o que calo
sinto o que guardo
sob outro eu igual ao mim
bem melhor, porém.
Mas autista.
O sexo implícito, o tesão abissal,
a gula mamada,
a timidez flatulenta,
jazem no fundo do meu mar.
Escafandro-me, debalde.
Calo constatações,
blasono brilhos
suicido sonhos,
calafrio-me a colher náuseas
e navego fés esperançosas.
Sou sem teto de onde salto
para o chão do não ser.
Minha blandícia
quem acarinhará?

Artur da Távola




A despedida - Artur da Távola




A despedida


Nunca se sabe onde está uma despedida. Até no afã do
até logo pode esconder-se um nunca mais. Na frase infeliz,
na simples conversa, algo pode estar morrendo, do amor ou da amizade.

Há despedidas que não são patentes. Não se lhes percebe
o estalo do afastamento, que pode estar no instante de mau humor,
na resposta infeliz, na alegria que não se repete ou na palavra que
deixamos de dar e receber. Às vezes, está na palavra que dizemos.

Nem sempre as pessoas se separam: esgarçam-se às vezes.
Viver esgarça. É algo que se afasta sem romper completamente.
Também no que esgarça pode haver despedida pois, embora não
haja perda de matéria, nunca mais será como antes.

Despedir-se é sutil, nem sempre aparece. Seres em mutação,
vivemos a mudar sem saber. Na mudança, transforma-se em
recordação o que antes era união e vontade, amizade ou convivência.
Tudo faz-se retrato, álbum, caderno, poema, carta, saudade ou memória.
A despedida não é por querer: acontece a despeito. Um simples "até já"
pode conter inimagináveis nuncas. Ou sempres.


Maravilhosa e cruel a vida! Tudo pode acontecer.
As ligações, salvo poucas, fazem-se precárias e falíveis.
Nosso destino é preso a acontecimentos semicontroláveis.
Ou impulsos, cansaços, e as discordâncias, são imprevisíveis.
E geram despedidas antes insuperáveis.

Ninguém sabe de quem se afastará. Nem quais as amizades
e amores de toda a vida, nada obstante existam. Raros captam
a dor que estala em cada hipótese de despedida. Separar-se contém
sempre a hipótese da despedida. Por isso, uma dor sempre se infiltra
em cada afastamento. Algo se assusta, escondido em tudo o que se separa.
Ainda que para ir ali pertinho e logo voltar.

Quem viaja ameaça a despedida. "Partir é morrer um pouco".
Dizem os franceses, e com razão. Ainda que para encontrar-se depois,
quem parte arrisca despedidas. Por isso, a emoção subjacente percorre-lhe
o mistério e a "região das certezas absolutas".

As grandes despedidas dão-se - contudo - sem que o percebamos.
As que sabemos e sofremos não são despedidas completas, pois a
saudade e a memória hão de trazer de volta o sentimento genuíno
que agora causa dor. As grandes despedidas infiltram-se no cotidiano
e nos atos corriqueiros de cada dia sem ser percebidas.
Muitos anos depois, vamos verificar que disfarçado em dia-a-dia ali
estavam e estalavam saudades antecipadas, vários nuncas dos quais
jamais suspeitamos. Nunca se sabe onde está uma despedida.

A não ser muito depois.


Artur da Távola





quarta-feira, 2 de julho de 2014

Andai ao sol e ao vento... - Gibran Khalil Gibran




"Andai ao sol e ao vento
com mais pelo e menos
vestimentas.
pois o sopro da vida está
no sol e a mão da vida está
no vento.
não esqueçais que a terra
adora sentir vossos pés descalços
e o vento deseja brincar com os vossos
cabelos."

Gibran Khalil Gibran

Na sombra de um templo - Gibran Khalil Gibran



"Na sombra de um templo,
meu amigo me apontou um cego.
Este homem é um sábio".
Aproximamos, e perguntei:
"desde quando o senhor é cego?"
"Desde que nasci".
"Eu sou um astrônomo", comentei.
"Eu também", o cego respondeu.
E, colocando a mão em seu peito, disse: "
Passo a vida observando os muitos sóis
e estrelas que se movem dentro de mim".

Gibran Khalil Gibran

Ninguém sabe direito... - Gibran Khalil Gibran



Ninguém sabe direito qual é a fronteira
entre a dor e o prazer: muitas vezes
eu penso que é impossível separa-los.
Você me dá tanta alegria que chega
a doer, e você me causa tanta dor
que eu chego a sorrir.

Gibran Khalil Gibran

Divina Música! - Gibran Khalil Gibran

Divina Música!

Filha da Alma e do Amor.
Cálice da amargura
E do Amor.
Sonho do coração humano,
Fruto da tristeza.
Flor da alegria, fragrância
E desabrochar dos sentimentos.
Linguagem dos amantes,
Confidenciadora de segredos.
Mãe das lágrimas do amor oculto.
Inspiradora de poetas, de compositores
E dos grandes realizadores.
Unidade de pensamento dentro dos fragmentos
Das palavras.
Criadora do amor que se origina da beleza.
Vinho do coração
Que exulta num mundo de sonhos.
Encorajadora dos guerreiros,
Fortalecedora das almas.
Oceano de perdão e mar de ternura.
Ó música.
Em tuas profundezas
Depositamos nossos corações e almas.
Tu nos ensinaste a ver com os ouvidos
E a ouvir com os corações.


Gibran Khalil Gibran





Você dá, mas pouco ... - Gibran Khalil Gibran




"Você dá, mas pouco quando você dá de suas posses.
É quando você dá de si mesmo,
que você realmente dá. "

Gibran Khalil Gibran

O pecado não existe... - Gibran Khalil Gibran




O pecado não existe, exceto
na medida em que o criamos.
Somos nós, portanto, que
devemos destruí-lo.

Gibran Khalil Gibran

A vós, a terra oferece... - Gibran Khalil Gibran




' A vós, a terra oferece seus frutos,
e nada vos faltará se somente
souberdes como encher as mâos'.
“...Tudo que tem existência existe dentro do homem,
e tudo que está dentro do homem existe em existência.
Não há fronteiras entre longe e perto,
baixo e alto, grande e pequeno. Tudo é uno...”

Gibran Khalil Gibran

E quanto a nós... - Gibran Khalil Gibran



E quanto a nós, que buscamos o Absoluto,
e que construímos um jardim
usando a nossa própria solidão,
a Vida nos deixou a imensa paixão
para aproveitar cada instante,
com toda a intensidade.

Gibran Khalil Gibran

O primeiro olhar... - Gibran Khalil Gibran




O primeiro olhar
vindo dos
olhos do ser
amado é como
o espírito
que se movia
sobre a face das
águas e deu origem
ao céu e à terra,
quando o
Senhor sentenciou:
"E agora, vivei!"

Gibran Khalil Gibran

A Beleza - Gibran Khalil Gibran



A Beleza


"Eu construiria uma cidade
á beira do mar,e numa ilha do porto
erigeria uma estatua não a liberdade,
Mas á beleza.
Pois, foi ao redor da liberdade
que os homens travaram suas batalhas
por oposição, ante a face da beleza,
todos os homens estendem as mãos
uns aos outros como irmãos.""

Gibran Khalil Gibran

A Voz do Mestre - Gibran Khalil Gibran



A Voz do Mestre

"Deixa que a Terra leve
Aquilo que é dela;
Porque eu, Homem,
não terei fim."

Gibran Khalil Gibran

Amor Limitado & Amor Ilimitado - Gibran Khalil Gibran



Amor Limitado & Amor Ilimitado

“O amor limitado
procura a posse do amado.
Mas o amor ilimitado
nada procura
senão a sua própria realização.
O amor que nasce da
inconseqüência da juventude
se satisfaz com a união
e o gozo, e cresce com os
beijos e caricias, mas o amor que
nasce no coração do infinito e se
aprofunda com os mistérios da
noite, não se satisfaz como eterno
e o incomensurável , e não respeita
senão a divindade.”

Gibran Khalil Gibran

A Música - Gibran Khalil Gibran.



A Música

“Como o amor, o apelo da musica é universal.
E seus ritmos expressam todas as estações da alma.
O homem não sabe o que diz os pássaros
ou o córrego, ou as ondas ou a chuva.
Mas seu coração percebe misteriosamente
o sentido de todas essas vozes,
que hora o alegram, ora o entristecem.”

Gibran Khalil Gibran.

terça-feira, 1 de julho de 2014

ROMANCE DE LA LUNA - Federico Garcia Lorca




ROMANCE DE LA LUNA
a Conchita García Lorca

La luna vino a la fragua
con su polisón de nardos.
El niño la mira mira.
El niño la está mirando.

En el aire conmovido
mueve la luna sus brazos
y enseña, lúbrica y pura,
sus senos de duro estaño.

Huye luna, luna, luna.
Si vinieran los gitanos,
harían con tu corazón
collares y anillos blancos.

Niño déjame que baile.
Cuando vengan los gitanos,
te encontrarán sobre el yunque
con los ojillos cerrados.

Huye luna, luna, luna,
que ya siento sus caballos.
Niño déjame, no pises,
mi blancor almidonado.

El jinete se acercaba
tocando el tambor del llano.
Dentro de la fragua el niño,
tiene los ojos cerrados.

Por el olivar venían,
bronce y sueño, los gitanos.
Las cabezas levantadas
y los ojos entornados.

¡Cómo canta la zumaya,
ay como canta en el árbol!
Por el cielo va la luna
con el niño de la mano.

Dentro de la fragua lloran,
dando gritos, los gitanos.
El aire la vela, vela.
el aire la está velando.

Federico García Lorca



ESTE É O PRÓLOGO - Federico Garcia Lorca




ESTE É O PRÓLOGO

Deixaria neste livro
toda a minha alma.
este livro que viu
as paisagens comigo
e viveu horas santas.

Que pena dos livros
que nos enchem as mãos
de rosas e de estrelas
e lentamente passam !

Que tristeza tão funda
é olhar os retábulos
de dores e de penas
que um coração levanta !

Ver passar os espectros
de vida que se apagam,
ver o homem desnudo
em Pégaso sem asas,

ver a vida e a morte,
a síntese do mundo,
que em espaços profundos
se olham e se abraçam.

Um livro de poesias
é o outono morto:
os versos são as folhas
negras em terras brancas,

e a voz que os lê
é o sopro do vento
que lhes incute nos peitos
- entranháveis distâncias.

O poeta é uma árvore
com frutos de tristeza
e com folhas murchas
de chorar o que ama.

O poeta é o médium
da Natureza
que explica sua grandeza
por meio de palavras.

O poeta compreende
todo o incompreensível
e as coisas que se odeiam,
ele, amigas as chamas.

Sabe que as veredas
são todas impossíveis,
e por isso de noite
vai por elas com calma.

Nos livros de versos,
entre rosas de sangue,
vão passando as tristes
e eternas caravanas

que fizeram ao poeta
quando chora nas tardes,
rodeado e cingido
por seus próprios fantasmas.


Poesia é amargura,
mel celeste que emana
de um favo invisível
que as almas fabricam.

Poesia é o impossível
feito possível. Harpa
que tem em vez de cordas
corações e chamas.

Poesia é a vida
que cruzamos com ânsia,
esperando o que leva
sem rumo a nossa barca.

Livros doces de versos
sãos os astros que passam
pelo silêncio mudo
para o reino do Nada,
escrevendo no céu
suas estrofes de prata.

Oh ! que penas tão fundas
e nunca remediadas,
as vozes dolorosas
que os poetas cantam !

Deixaria neste livro
toda a minha alma...

( tradução: William Agel de Melo )

Federico Garcia Lorca

A casada infiel - Federico Garcia Lorca


A casada infiel


(A Lydia Cabrera
e à sua negrinha)


E eu que fui levá-la ao rio
Certo de que era donzela,
Mas bem que tinha marido.
Foi a noite de São Tiago
E quase por compromisso.
As lâmpadas se apagaram
E se acenderam os grilos.
Já nas últimas esquinas
Toquei seus peitos dormidos,
Que de pronto se me abriram
Como ramos de jacinto.
A goma de sua anágua
Vinha ranger-me no ouvido
Como seda que dez facas
Rasgassem em pedacinhos.
Sem luz de prata nas copas
As árvores têm crescido
E um horizonte de cães
Ladra bem longe do rio

Após franqueadas as brenhas,
Franqueados juncos e espinhos,
Por baixo de seus cabelos
Fiz um ninho sobre o limo.
Eu tirei minha gravata.
Ela tirou seu vestido.
Eu, cinturão e revolver.
Ela, seus quatro corpinhos.

Nem nardos nem caracóis
Têm cútis com tanto viço,
Nem os cristais sob a lua
Alumbram com igual brilho.
Sua coxas me escapavam
Como peixes surpreendidos,
Metade cheias de lume,
Metade cheias de frio.
Galopei naquela noite
Pelo melhor dos caminhos,
Montado em potra nácar
Sem rédeas e sem estribos.
As coisas que ela me disse,
Por ser homem não repito
Faz a luz do entendimento
Que eu seja assim comedido.
Suja de beijos e areia,
Eu levei-a então do rio.
Contra o vento se batiam
As baionetas dos lírios

Portei-me como quem sou.
Como gitano legítimo.
Dei-lhe cesta de costura,
Grande, de cetim palhiço,
E não quis enamorar-me,
Pois ela, tendo marido,
Me disse que era donzela
Quando eu a levava ao rio.

Federico Garcia Lorca



AR DE NOTURNO - Federico Garcia Lorca






AR DE NOTURNO


Tenho muito medo
das folhas mortas,
medo dos prados
cheios de orvalho.
eu vou dormir;
se não me despertas,
deixarei a teu lado meu coração frio.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

Pus em ti colares
com gemas de aurora.
Por que me abandonas
neste caminho ?
Se vais muito longe,
meu pássaro chora
e a verde vinha
não dará seu vinho.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

Nunca saberás,
esfinge de neve,
o muito que eu
haveria de te querer
essas madrugadas
quando chove
e no ramo seco
se desfaz o ninho.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

Federico Garcia Lorca



Por viver muitos anos... - Manoel de Barros




Por viver muitos anos dentro do mato
moda ave
O menino pegou um olhar de pássaro -
Contraiu visão fontana.
Por forma que ele enxergava as coisas
por igual
como os pássaros enxergam.
As coisas todas inominadas.
Água não era ainda a palavra água.
Pedra não era ainda a palavra pedra.
E tal.
As palavras eram livres de gramáticas e
podiam ficar em qualquer posição.
Por forma que o menino podia inaugurar.
Podia dar às pedras costumes de flor.
Podia dar ao canto formato de sol.
E, se quisesse caber em uma abelha, era
só abrir a palavra abelha e entrar dentro
dela.
Como se fosse infância da língua.


Manoel de Barros
in “Poemas Rupestres”


AS BENÇÃOS - Manoel de Barros



AS BENÇÃOS

Não tenho a anatomia de uma garça pra receber
em mim os perfumes do azul.
Mas eu recebo.
É uma benção.
Às vezes se tenho uma tristeza, as andorinhas me
namoram mais de perto.
Fico enamorado.
É uma benção.
Logo dou aos caracóis ornamentos de ouro
para que se tornem peregrinos do chão.
Eles se tornam.
É uma benção.
Até alguém já chegou de me ver passar
a mão nos cabelos de Deus!
Eu só queria agradecer.

Manoel de Barros

De passarinhos ... - Manoel de Barros



De passarinhos
Para compor um tratado sobre passarinhos
É preciso por primeiro que haja um rio com árvores
e palmeiras nas margens.
E dentro dos quintais das casas que haja pelo menos
goiabeiras.
E que haja por perto brejos e iguarias de brejos.
É preciso que haja insetos para os passarinhos.
Insetos de pau sobretudo que são os mais palatáveis.
A presença de libélulas seria uma boa.
O azul é muito importante na vida dos passarinhos.
Porque os passarinhos precisam antes de belos ser
eternos.
Eternos que nem uma fuga de Bach.

Manoel de Barros
[Tratado geral das grandezas do ínfimo]

É por demais de grande... - Manoel de Barros




É por demais de grande a natureza de Deus.
Eu queria fazer para mim uma naturezinha particular.
Tão pequena que coubesse na ponta do meu lápis.
Fosse ela, quem me dera, só do tamanho do meu quintal.
No quintal ia nascer um pé de tamarino apenas para uso dos passarinhos.
E que as manhãs elaborassem outras aves para compor o azul do céu.
E se não fosse pedir demais eu queria que no fundo corresse um rio.
Na verdade na verdade a coisa mais importante que eu desejava era o rio.
No rio eu e a nossa turma, a gente iria todo dia jogar cangapé nas águas correntes.
Essa, eu penso, é que seria minha naturezinha particular:
Até onde meu pequeno lápis poderia alcançar.


Manoel de Barros
O Lápis, in: Poemas Rupestres

Na língua dos pássaros... - Manoel de Barros




Na língua dos pássaros uma expressão tinge a seguinte.
Se é vermelha tinge a outra de vermelho.
Se é alva tinge a outra dos lírios da manhã.
É língua muito transitiva a dos pássaros.
Não carece de conjunções nem de abotoaduras.
Se comunica por encantamentos.
E por não ser contaminada de contradições
A linguagem dos pássaros
Só produz gorjeios.

Manoel de Barros

O Apanhador de Desperdícios - Manoel de Barros




O Apanhador de Desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água, pedra, sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos,
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros
In:"Memórias Inventadas"



LÍNGUAS - Manoel de Barros




LÍNGUAS

Contenho vocação pra não saber línguas cultas.
Sou capaz de entender as abelhas do que alemão.
Eu domino os instintos primitivos.

A única língua que estudei com força foi a portuguesa.
Estudei-a com força para poder erra-la ao dente.

A língua dos índios Guatós é murmura: é como se ao
dentro de suas palavras corresse um rio entre pedras.

A língua dos Guaranis é gárrula: para eles é muito
Mais importante o rumor das palavras do que o sentido
que elas tenham.
Usam trinados até na dor.

Na língua dos Guanás há sempre uma sombra do
charco em que vivem.
Mas é língua matinal.
Há nos seus termos réstias de um sol infantil.

Entendo ainda o idioma inconversável das pedras.
É aquele idioma que melhor abrange o silêncio das
palavras.

Sei também a linguagem dos pássaros – é só cantar.

Manoel de Barros

O Vento - Manoel de Barros



O Vento

Queria transformar o vento
Dar ao vento uma forma concreta e apta a foto
Eu precisava pelo menos de enxergar uma parte física do vento: uma costela, o olho...
Mas a forma do vento me fugia que nem as formas de uma voz.
Quando se disse que o vento empurrava a canoa do índio para o barranco.
Imaginei um vento pintado de urucum a empurrar a canoa do índio para o barranco
mas essa imagem me pareceu imprecisa ainda
estava quase a desistir quando me lembrei do menino montado no cavalo do vento - que lera em Shakespeare
Imaginei as crinas soltas do vento a disparar pelos prados com o menino
Fotografei aquele vento de crinas soltas.

Manoel de Barros

No descomeço era o verbo ... - Manoel de Barros



No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá,
Onde a criança diz:
eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
Funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz
De fazer nascimentos -
O verbo tem que pegar delírio.

Manoel de Barros

Deus disse: ... - Manoel de Barros




Deus disse: vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.

Manoel de Barros

O Guardador de Águas - Manoel de Barros






O Guardador de Águas

Com 100 anos de escória uma lata aprende a rezar.
Com 100 anos de escombros um sapo vira árvore e cresce
por cima das pedras até dar leite.
Insetos levam mais de 100 anos para uma folha sê-los.
Uma pedra de arroio leva mais de 100 anos para ter murmúrios.
Em seixal de cor seca estrelas pousam despidas.
Mariposas que pousam em osso de porco preferem melhor
as cores tortas.
Com menos de 3 meses mosquitos completam a sua
eternidade.
Um ente enfermo de árvore, com menos de 100 anos, perde
o contorno das folhas.
Aranha com olho de estame no lodo se despedra.
Quando chove nos braços da formiga o horizonte diminui.
Os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe
que os escorpiões de areia.
A jia, quando chove, tinge de azul o seu coaxo.
Lagartos empernam as pedras de preferência no inverno.
O vôo do jaburu é mais encorpado do que o vôo das horas.
Besouro só entra em amavios se encontra a fêmea dele
vagando por escórias…
A 15 metros do arco-íris o sol é cheiroso.
Caracóis não aplicam saliva em vidros; mas, nos brejos,
se embutem até o latejo.
Nas brisas vem sempre um silêncio de garças.
Mais alto que o escuro é o rumor dos peixes.
Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a
fazer parte dos pássaros que a gorjeiam.
Quando a rã de cor palha está para ter - ela espicha os
olhinhos para Deus.
De cada 20 calangos, enlanguescidos por estrelas, 15 perdem
o rumo das grotas.
Todas estas informações têm uma soberba desimportância
científica - como andar de costas.

Manoel de Barros




Depois de ter cortado ... - Octávio Paz



Depois de ter cortado todos os braços que se estendiam para mim;
depois de ter entaipado todas as janelas e todas as portas;
depois de ter inundado os fossos com água envenenada;
depois de ter edificado minha casa num rochedo inacessível aos afagos e ao medo;
depois de ter lançado punhados de silêncio e monossílabos de desprezo a meus amores;
depois de ter esquecido meu nome e o nome da minha terra natal;
depois de me ter condenado a perpétua espera e a solidão perpétua,
ouvi contra as pedras de meu calabouço de silogismos
a investida úmida, terna, insistente, da Primavera.

Octávio Paz

Dia - Octavio Paz




Dia

De que céu caído,
oh insólito,
imóvel solitário na onda do tempo?
És a duração,
o tempo que amadurece
num instante enorme, diáfano:
flecha no ar,
branco embelezado
e espaço já sem memória de flecha.
Dia feito de tempo e de vazio:
desabitas-me, apagas
meu nome e o que sou,
enchendo-me de ti: luz, nada.

E flutuo, já sem mim, pura existência.

Octavio Paz

Antes do começo - Octavio Paz





Antes do começo

Ruídos confusos, claridade incerta.
Outro dia começa.
Um quarto em penumbra
e dois corpos estendidos.
Em minha fronte me perco
numa planície vazia.
E as horas afiam suas navalhas.
Mas a meu lado tu respiras;
íntima e longínqua
fluis e não te moves.
Inacessível se te penso,
com os olhos te apalpo,
te vejo com as mãos.
Os sonhos nos separam
e o sangue nos reúne:
Somos um rio que pulsa.
Sob tuas pálpebras amadurece
a semente do sol.
O mundo
No entanto, não é real,
o tempo duvida:
Só uma coisa é certa,
o calor da tua pele.
Em tua respiração escuto
as marés do ser,
a sílaba esquecida do Começo.


Octavio Paz
(Trad. Antônio Moura)

O RIO - Octavio Paz




O RIO (Fragmento)

A metade do poema sobressalta-me sempre um grande desamparo, tudo me abandona,
não há nada a meu lado, nem sequer esses olhos que por detrás
contemplam o que escrevo,
não há atrás nem adiante, a pena se rebela, não há começo nem
fim, tampouco muro que saltar,
é uma esplanada deserta o poema, o dito não está dito, o não dito
é indizível,
torres, terraços devastados, babil8nias, um mar de sal negro, um
reino cego,
Não,
deter-me, calar, fechar os olhos até que brote de minhas pálpebras
uma espiga, um repuxo de sóis,
e o alfabeto ondule longamente sob o vento do sonho e a maré suba
em onda e a onda rompa o dique,
esperar até que o papel se cubra de astros e seja o poema um
bosque de palavras enlaçadas,
Não, não tenho nada a dizer; ninguém tem nada a dizer, nada nem
ninguém exceto o sangue,
nada senão este ir e vir do sangue, este escrever sobre o já escrito
e repetir a mesma palavra na metade do poema,
sílabas de tempo, letras rotas, gotas de tinta, sangue que vai e vem
e não diz nada e me leva consigo.

Octavio Paz
(Trad. Haroldo de Campos)